quarta-feira, 1 de maio de 2024

Por trás do silêncio

Em menos de 48h, feminicídios e tentativa contra mulheres à luz do dia evidenciam cultura machista no Piauí

31 de janeiro de 2022

Edição Luana Sena

Um relacionamento de mais de 20 anos marcado por agressões com o tenente reformado Pedro José de Oliveira causaram múltiplas lesões na dona de casa Marilene Pereira. Na manhã da última quarta-feira (26), enquanto pedalava até à fisioterapia para tratar um trauma causado na perna, por conta das agressões sofridas, foi abordada pelo ex-companheiro no bairro Mocambinho, zona Norte de Teresina.

Com uma arma de fogo, Pedro José efetuou três disparos, que acertaram o braço e a nuca de Marilene. Enquanto testemunhas prestavam socorro à mulher, ele fugiu em um veículo branco e foi encontrado pela polícia em sua residência horas depois. Segundo populares que estavam no local, o homem saiu do local como se nada tivesse acontecido. 

A filha do casal, Yslane Nathasha da Rocha, contou à reportagem que o casal estava separado há quinze anos. Desde criança, junto aos outros irmãos, presenciava a rotina da mãe marcada por agressões físicas e psicológicas. Nos últimos anos, no entanto, ela batalhava na justiça para ser indenizada por danos morais causados durante o casamento. “Ele não aceitava a decisão judicial”, declara a filha. “Rondava a casa, mas não sabia os horários dela. Acreditamos que ele já estava rondando e vigiando ela há um tempo”, revela. 

Mesmo com a medida protetiva atualizada e uma série de queixas formais relatando assédios e tentativas de agressão à Marilene, não foi possível afastar Pedro José da dona de casa. Marilene morreu nesta segunda (31), após cinco dias lutando pela vida na UTI.

Menos de 24h antes dessa tentativa de feminicídio, do outro lado da cidade – na zona Sul, no bairro Ilhotas  – antes de Valdirene Torquato chegar no cruzamento das ruas Goiás com Monsenhor Gil, a um quarteirão da Avenida Frei Serafim, seu ex-marido, Ezequiel Rodrigues Araújo, tirou sua vida com 19 facadas. O relacionamento durou uma década, mas há cinco anos ela tentava romper o ciclo de violência. Já era a terceira vez que o homem tentava matá-la apenas por não aceitar o fim do casamento. 

De acordo com a pesquisadora em ciências criminais, Ana Carolina Gondim, o feminicídio é um processo histórico marcado pela submissão e brutalidade contra as mulheres. Uma mulher vítima de feminicídio, na maioria dos casos, vivenciou um ciclo longo de violências – sejam elas físicas, verbais e emocionais.  No caso de Marilene e Valdirene, ambas conviviam há mais de uma década sob ameaças e agressões. 

Uma característica desses crimes é o menosprezo pela condição da vítima. Diferente dos crimes de homicídio entre homens, os feminicídios chocam pela brutalidade com que ocorrem. Não é incomum crimes à luz do dia, na frente dos filhos, o uso de armas brancas e tentativas de desfigurar a vítima – tudo isso faz parte do “modus operandi” dos feminicidas. “Outro indício desse menosprezo da condição feminina seria a exibição do corpo em lugar público e de forma moralmente humilhante para a vítima, como deixar preservativos perto do corpo, insinuando relação sexual eventual, ou deixá-la nua”, pontua Gondim. 

Quando se traz à crescente dos casos de feminicídio, levanta-se a tônica pela rigidez ou endurecimento das penas contra esses tipos de crime. Porém, dentro do aparato jurídico brasileiro, a Lei Maria da Penha já é considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) uma das três mais avançadas do mundo – sua principal inovação são as medidas protetivas de urgência para as vítimas.

No que tange à Lei do Feminicídio, Gondim reforça que a criminalização foi uma providência necessária para que houvesse uma resposta mais rápida a fim de punir os agressores. No entanto, essa é apenas uma das modificações que o estado deve empreender para erradicar o crime. “A lei só é aplicada depois que a mulher perde a vida. A gente tem que agir antes”, reforça a pesquisadora. 

Quando o assassinato de mulheres cometido em razão de gênero foi criminalizado, tornou-se uma responsabilidade do estado preveni-lo e combatê-lo. Porém, a fragilidade e demora em tomar providências definitivas para combater a violência contra as mulheres, em muitas ocasiões, facilita o cenário de agressões contra mulher e a consumação dos crimes de feminicídio. 

Entre as fragilidades desse sistema estão as carências nas investigações dos crimes, que geram erros e negligências. Além disso, a revitimização da vítima é constante, ocasionando a falta de evidências para os julgamentos. “Muitas mulheres não possuem acesso efetivo à justiça, a falta de assistência às mulheres sobreviventes e também aos membros de sua família”, destaca. “A desigualdade de gênero e todos os obstáculos acima descritos fazem parte da realidade brasileira, acentuando a vulnerabilidade feminina em nossa sociedade, materializando-se por meio de estupros, espancamentos, palavras cruéis e degradantes e, por fim, o assassinato”, finaliza Ana Carolina.

Vozes silenciadas

“O feminicídio tem um grande aliado: o silêncio”, dispara a delegada da Polícia Civil, Eugênia Villa. Dentro do lar abusivo, ou o ciclo da violência, as agressões não são desconhecidas pela família, amigos e vizinhos. Em quase 90% dos casos de violência dentro do ambiente doméstico, a rede familiar da vítima sabe o que se passa dentro do lar, apontou o Fórum de Segurança Pública. 

O silêncio e negacionismo da situação é o que potencializa e faz com que mais de 40% das mulheres não registrem os Boletins de Ocorrência (B.O) nas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM). Conforme a delegada, no Piauí, igrejas, familiares e amigos são o primeiro ponto de apoio da vítima que, desmotivada a realizar a denúncia, continua a viver dentro do ciclo da violência. “São pessoas como eu, você, qualquer um pode estar perto de uma mulher em situação de agressão”, aponta. “Muitas vezes, ela só precisa ser encorajada”.

Ao todo, menos de 15% das mulheres que sofrem algum tipo de violência chegam às delegacias – é o que aponta a delegada conforme dados apurados pela Polícia Civil. Essa estimativa denuncia a grande subnotificação no Piauí. Entre janeiro e setembro do ano passado, no Piauí, foram cerca de 4.909 boletins de ocorrências registrados nas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs) – segundo último levantamento realizado pela Secretaria Estadual de Segurança Pública (SSP-PI), através do 7º Boletim de Ocorrências de Violência Contra a Mulher no Piauí. O número alarma um crescimento de quase 30%, se comparado ao mesmo período no ano de 2020. 

 

Uma das soluções para vencer esse panorama é o estabelecimento de políticas sociais e comunitárias. Anualmente, há meses pontuais destinados a realização de ações de enfrentamento, como março – em alusão ao Dia Internacional da Mulher – e agosto – no Aniversário da Lei Maria da Penha. “Precisamos sair do ‘simbólico’ e entrar na vida real dessas mulheres diariamente”, aponta Eugênia. “A maioria das vítimas são mulheres que não tem acesso à comunicação telefônica, internet ou que estão sob vigilância do agressor”, observa. “É preciso que a gente se aproxime de forma constante. Se a gente só lembrar da mulher no mês de março, elas vão sendo esquecidas durante o ano todo”.

A delegada ainda comentou à reportagem que, enquanto os noticiários escancaram as notícias de Teresina, em São Raimundo Nonato, uma mulher foi morta pelo companheiro. “No interior do estado a violência é maior, mas costuma ser abafada”. 

Eugênia frisa que as políticas públicas também precisam ser elaboradas na perspectiva do gênero masculino. Em pesquisa realizada com casos de violência contra mulher em Teresina e São Raimundo Nonato, percebeu-se que os homens possuíam escolaridade até o fundamental incompleto, além do uso abusivo de álcool. “É importante que a gente traga os homens para essa luta, como também trabalhar a trajetória do machismo que muitos deles foram culturalmente submetidos”, afirma a delegada. 

Fortalecendo a rede 

Um dos pontos para poder combater a violência de gênero em qualquer local é o fortalecimento da Rede de Enfrentamento. Em cada estado brasileiro, a rede é composta por inúmeras entidades, desde órgãos públicos – Ministério Público, Delegacias, Tribunais de Justiça, Ministério Público, Secretarias e Coordenadorias – até movimentos organizados pela sociedade civil. Além de debaterem pontos chaves para mitigar a desigualdade de gênero, a articulação tem como principal ponto reduzir os índices de violência doméstica e feminicídio. 

Ainda conforme a delegada Eugênia, um passo para o fortalecimento seria uma melhoria no aparato policial especializado à mulher. Porém, a realidade do estado é uma proporção de 7 DEAM’s para 224 municípios. O número representa uma cobertura de 3,1%. 

Com um aparato policial insuficiente, o Piauí também segue registrando aumento no pedido de medidas protetivas. Em 2020, o número aumentou e hoje ocupa a 8° posição do país em solicitações desse caráter. Até junho de 2021, 2.060 mulheres já haviam solicitado medidas protetivas. Segundo o Tribunal de Justiça do Piauí, o número representa um aumento de 30,7% nos pedidos, em comparação ao mesmo período do ano passado. “E a curva é ascendente”, ressalta Eugênia. 

A fiscalização das medidas protetivas ainda é uma outra demanda a ser cumprida. Em 2020, a Polícia Militar criou a Patrulha Maria da Penha: uma guarnição específica para fazer acompanhamentos e visitas ao autor da violência. Em um ano de atividade, foram realizadas mais de 500 fiscalizações – porém, houve quase o dobro de medidas expedidas durante o mesmo período. 

Limitada apenas à capital, a atuação precisaria ser expandida para os outros municípios para poder garantir uma proteção ampla às mulheres do Estado. Segundo a comandante responsável pela Patrulha, Leoneide Rocha, a guarnição não consegue atender todas as medidas e se restringe aos casos que oferecem maiores riscos à proteção da mulher. 

Para a coordenadora do Centro de Referência Esperança Garcia (CREG), que acolhe mulheres em situação de violência em Teresina, a sociedade também pode estar envolvida no combate às agressões. Ela cita, por exemplo, que as duas vítimas que citamos no início desta reportagem estavam há muito tempo sob ameaça dos agressores. “Ninguém ao redor dessas mulheres notou que elas precisavam ser protegidas?”, indaga a coordenadora. “A sociedade precisa aprender a repudiar a violência contra nossos corpos”, frisa. “Qualquer pessoa pode proteger, acolher e denunciar”.

As denúncias de violência contra a mulher podem ser feitas por meio de registro de ocorrência nas delegacias especializadas, delegacias gerais ou por meio de boletim de ocorrência online. Além disso, a vítima também pode fazer uso da Central de Atendimento à Mulher pelo número. 

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Categorias: Especial

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