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Se o campo não planta, a cidade não janta

Pequenos agricultores contam as dificuldades de seguir com o trabalho na era do agronegócio

15 de julho de 2021

Cresce em toda a região do Matopiba, especialmente no Piauí, a presença de empresas voltadas para o agronegócio. Por aqui, gigantes como a Bunge, Agrisa, Terracal Alimentos, Grupo Tomazini, Grupo Olho D´Água, entre outros empreendimentos já se instalaram e ocuparam espaços para a produção em grande escala, o que faz com que o Piauí siga despontando como a nova fronteira do agronegócio no país. 

Essas empresas estão instaladas, em sua maioria, na região do cerrado, e produzem soja, milho, cana de açúcar e outros alimentos que, industrializados, são comercializados mundo afora. Elas sustentam a narrativa de que a economia do Piauí vem crescendo mais que a população desde a primeira década deste século. Havia 2,9 milhões de piauienses em 2002 e, em 2010, já eram 3,1 milhões – quase 7% a mais, de acordo com o IBGE. Já o PIB cresceu 52,5% no mesmo período.

Outra projeção, realizada pela MB Associados e divulgada pelo governo do estado, mostra que o Piauí deve alcançar o segundo maior crescimento do Produto Interno Bruto entre as 27 unidades da federação do Brasil. No levantamento, que considera o acumulado entre os anos 2010 e 2022, o Piauí aparece com um crescimento de 34,5%, índice quatro vezes maior que a média nacional de 7,9%. Para 2021, a projeção é que o PIB do Piauí cresça 3,99% – configurando o quarto maior índice do Brasil. 

Apesar dos números parecerem satisfatórios e passarem a ideia de um estado que avança e enriquece em rapidez, olhar de perto para as famílias de pequenos agricultores, habitantes das regiões vistas como próspera pelas indústrias, traz outra perspectiva dessa transformação.

Leia mais: 1º reportagem da série “Agro pra quem?”

O agricultor João Souza*, 57 anos, se viu obrigado a vender sua propriedade, de pouco mais de 3 hectares de terras, para uma grande indústria que se instalou em sua cidade, em Bom Jesus, a 603 km de Teresina. “Eles chegaram comprando todos os terrenos ao meu redor, eu fui ficando ilhado e não tive outra saída”, relembra o fato. “Tive que vender e resolvi me mudar para outra cidade com a minha família. As coisas agora estão bem diferentes, pois lá a gente produzia e comercializava, ainda que pouco”.

Além de pessoas como o seu João, que viram de perto o esmagamento provocado pelo agronegócio, há também exemplos como o de Santana Silva. Aos 55 anos, a produtora agroecológica segue fiel a uma forma de produção sustentável, desviando-se de uma modernização pautada pelo agronegócio. “Tudo é produzido de modo saudável para mim e para quem futuramente irá consumir”, explica. Filha de agricultores, ela cresceu em meio a produção da roça no Piauí. Com os pais aprendeu o ofício, observando e praticando. Sempre pensou que, em uma produção saudável, não deveria haver espaço para agrotóxicos.

Hoje, Santana vive no Assentamento Vale da Esperança, a 27 km da área urbana de Teresina. Em dado de 2017, o Instituto de Terras do Piauí (INTERPI), descreve que no estado existem 499 assentamentos da reforma agrária, beneficiando mais de 30 mil famílias. No assentamento em formato de mandala (sistema que consiste no cultivo de plantas em canteiros circulares formados ao redor de um reservatório de água) ela produz feijão, milho, mandioca na roça e na horta, além de cebolinha, quiabo, mamão, salsa, açafrão e inhame. Boa parte dos alimentos faz parte da alimentação dos próprios moradores. Antes da pandemia, os produtos eram também comercializados em pequenas feiras – agora as vendas singelas acontecem através das redes sociais do assentamento. 

O cotidiano de Santana envolve todo o processo de plantio, zelo e colheita. “Me sinto feliz com a qualidade dos meus produtos”, diz em entrevista. “Tenho  consciência de que estou produzindo um alimento saudável”, defende. Para ela, a produção do agronegócio não é plantada a partir de pensamentos que se preocupam com o bem estar das pessoas: “Eles [agronegócio] se preocupam com questões de pôr o dinheiro no bolso porque quando a gente tem consciência de que o que a gente faz pode prejudicar o outro e continua  fazendo, quer dizer que não há preocupação com quem vai consumir, nem com a natureza”, continua. A produção de alimentos, que vai do campo à cidade, é hoje a sua fonte de renda.

 

Pequenos agricultores apostam na agroecologia

Defendendo um manejo saudável da terra, a agroecologia vem destacando-se entre os pequenos produtores – pessoas que, no geral, acreditam que o uso de produtos químicos não pode existir concomitante a uma preocupação real com a terra. 

A agroecologia é uma ciência, prática e movimento social que volta aos modos e concepções praticadas antes da revolução verde. É a saída de produtos químicos nocivos e a produção orientada pelo  dinheiro a base de commodities agropecuárias do agronegócio.

A palavra, ainda pouco conhecida em noticiários e no dia a dia, possui métodos e princípios próprios, com o potencial de produção de alimentos sem veneno para a humanidade, a favor da biodiversidade. Em “A dialética da Agroecologia”, os autores Luis Machado e Luis Machado Filho comentam que a agroecologia se apropria de progressos da ciência e da tecnologia, com a incorporação das questões sociais, ambientais, políticas e culturais, como também energéticas e éticas. O livro descreve a agroecologia como “a agricultura para novos tempos, que dispõem de saberes desde ancestrais aos atuais”.

O trabalho de Santana em seu assentamento, além de permitir o acesso à produção de um alimento limpo, permite às populações do campo a possibilidade de viver em seus ambientes – são maneiras também de resistir e lutar pelo acesso a terra e o direito de permanecer e nela trabalhar. 

Leia mais: Potencial do Piauí atrai investimento de grandes indústrias

 

Agricultura familiar também busca ampliar espaços

Fazendo um panorama sobre a agricultura familiar, Antonio Pereira, diretor de inclusão produtiva na Secretaria de Agricultura Familiar do Estado, diz que os campesinos possuem cada vez mais autonomia com possibilidade de renda a partir da comercialização de seus produtos, com a abertura de espaços de comercialização, como as feiras.  

A agricultura familiar teve um avanço significativo a partir dos anos 2000, quando o governo federal criou o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), com o olhar sobre a reforma agrária, o desenvolvimento sustentável e a agricultura familiar.  Era o incentivo à políticas agrárias de permanência no campo. Antes, todos os fomentos eram orientados pelo Ministério da Agricultura, que possuía uma relação mais aproximada com o agronegócio. Mas em 2016, após um decreto do presidente interino Michel Temer, o MDA foi extinto. De 2003 até 2018, as ações que vinham se viabilizando, sofreram ações sequenciais de desmontes. “Esse universo de ações de um tempo tiveram uma ruptura. No Brasil houve uma parada geral desse suporte”, diz Pereira.

Grande parte dos programas que fomentavam a produção e o acesso à terra foram extintos e, àqueles que foram mantidos, seguiram atuando com redução de verba – como foi o caso do Programa de Aquisição de Alimentos, o PAA.

O agronegócio sustenta a narrativa de que é ele que alimenta o país. Para Antonio, que é contrário a essa visão, a produção de alimentos vem da agricultura familiar. “Quem alimenta o prato da mesa é a mulher e o homem do campo”. 

 

Governo deve garantir direitos aos povos tradicionais

A secretária estadual do Agronegócio, Simone Pereira, informou que o governo busca novos investimentos na área compreendida no Matopiba. Ela explica que as iniciativas realizadas, envolvendo órgãos públicos em parceria com empreendimentos agrícolas, visam incentivar as práticas que tragam maior sustentabilidade e também proteção às famílias que residem nos cerrados – além de pautar a regularização das terras.

A Lei 7.294 em vigor desde 2019, tenta regularizar a situação de povos e comunidades tradicionais em relação à ocupação da terra. O novo texto, que revogou alguns dispositivos da lei anterior, de 2017, foi construído em parceria com diversos setores – entre eles, o Núcleo de Regularização Fundiária, e prevê a doação de terras públicas aos povos e comunidades do estado. “O Interpi tem atuado preservando o direito da terra dessas comunidades bem como emitindo títulos para garantir o direito de permanência”, diz.

De acordo com ela, há em curso projetos com objetivo de fomentar a regularização das terras e promover qualidade de vida das famílias tradicionais da região. “O Projeto Pilares de Crescimento e Inclusão Social, financiado pelo Banco Mundial, é um dos exemplos”, cita. “Ele tem o objetivo de ampliar ações voltadas para a inclusão produtiva e social nas áreas de educação, saúde, recursos hídricos, geração de renda, além de regularização fundiária e melhoria da gestão pública”, finaliza.

*A pedido da fonte, sua identidade foi preservada.

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Categorias: Reportagem

Geysa Silva

Jornalista, consultora de marketing político e especial Experiência Piauí.

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