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Sobre a terra há de viver sempre o mais forte*

Há mais pobreza e desigualdade do que bem estar e riqueza nos municípios que se destacam no agronegócio

14 de junho de 2021 Tempo de leitura: 11 minutos

No ranking da produção de grãos no Brasil, o Piauí figura como 12º colocado – somos o 3º do Nordeste e ficamos atrás da Bahia e do Maranhão. Cerca de 2% de toda a produção de grãos no país sai do Piauí. São números animadores para quem vê o agronegócio como a possibilidade de crescimento e desenvolvimento para as regiões de cultivo. Mas, a realidade nessas localidades pode ser bem diferente do que podem fazer acreditar os números. 

O bioma do cerrado piauiense ocupa uma área de 11,5 milhões de hectares, compreendendo 28 das 224 cidades entre as regiões Norte e Sul do Piauí. Os dados são de pesquisa realizada pela Fundação Cepro e revelam ainda que a agricultura mecanizada se expande principalmente a partir dos plantios de soja, arroz, milho, feijão e algodão.

No estado, o crescimento na produção de grãos é um dado em ascensão ano após ano. Para se ter uma ideia, a projeção para 2021 é de que o estado chegue a produzir 5,4 milhões de toneladas –  cerca de 10,4% a mais que no ano passado. Isso significa que o Piauí está exportando e arrecadando mais. Mas o que está sendo feito com os recursos arrecadados através desta expansão e crescimento?

O estado faz parte do Matopiba, união das siglas dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. A delimitação da área foi oficializada através de decreto da presidência da república no ano de 2015. A região possui cerca de 324 mil estabelecimentos agrícolas, 46 unidades de conservação, 35 terras indígenas e 781 assentamentos de reforma agrária e áreas quilombolas, num total estimado em 14 milhões de hectares de áreas legalmente atribuídas, além de áreas de conservação ainda em processo de regularização. Aproximadamente 6 milhões de pessoas vivem na região, segundo o Censo de 2010 (IBGE), o último realizado na região.

A partir da criação da união entre os estados, que resultou na última fronteira agrícola do país, surgiram muitos discursos sobre a expansão do agronegócio e o crescimento para as regiões produtivas. Pesquisas realizadas recentemente revelam perspectivas e realidades diferentes, que contradizem os discursos e as promessas por trás de um setor poderoso e faminto pela exploração lucrativa dos recursos.

Essa realidade dissonante será explorada na série “Agro pra quem?”, que inicia hoje no O Estado do Piauí. Nesta primeira reportagem, detalhamos a origem do agronegócio e seu impacto na vida das pessoas e nas regiões onde as empresas e grandes fazendas se instalam.

 

A terra prometida

 Um dos estudos mais recentes sobre a região do Matopiba traz no título uma desanimadora conclusão: “Há mais pobreza e desigualdade do que bem estar e riqueza nos municípios do Matopiba”. Os resultados, apresentados no início de 2021 no artigo conjunto de Arilson Favareto, Suzana Kleeb, Paulo Seifer e Marcos Pó (UFABC), além de Louise Nakagawa, do Greenpeace, colidem frontalmente com os discursos e promessas de progresso pela via do agronegócio. Realizado a partir da análise e sistematização de dados e de variados indicadores econômicos e sociais dos 337 municípios pertencentes à região, o estudo teve o complemento de pesquisas de campo em 14 deles –  contemplando distintos perfis de localidades. Foram realizadas 150 entrevistas entre dezembro de 2017 e maio de 2018.

Em um trecho do estudo, Arilson Favareto, sociólogo e doutor em Ciência Ambiental, alerta para a má distribuição de riqueza nessas cidades. “A riqueza gerada é muito concentrada e não chega à maior parte da população local”, informa. “A maior parte dos municípios do Matopiba sequer vê essa riqueza circular”.

Estudiosos classificam como municípios “injustos”, dentro do Matopiba, aqueles que possuem alta produção e indicadores sociais abaixo da média (67). Já os municípios “ricos” são aqueles com alta produção e indicadores sociais superiores (45). Um terceiro grupo de cidades, bastante reduzido (29), de baixa produção e condições de vida acima da média, foi chamado de “remediados”. Os demais 196 municípios são considerados “pobres”, pois apresentam baixa atividade econômica agropecuária e números baixos nas garantias sociais.

Analisando a realidade piauiense, o município de Bom Jesus pode ser um exemplo. De acordo com informações do IBGE, o PIB per capita do município é estimado em mais de R$36 mil. Na contramão desse dado, a cidade conta atualmente com uma população de cerca de 25 mil pessoas – mais de 16 mil são de baixa renda e recebem auxílio de programas sociais do governo para garantir o seu sustento. Além disso, o IDHM do município, que é de 0.668, seguia  abaixo da média nacional em 2010. Números destoantes que mostram contradições no desenvolvimento prometido em Matopiba.

 

Do campo a plenária

O modelo de produção e percurso idealizado pelo agronegócio não surgiu do dia para noite. O sistema de produção é reflexo de uma concepção financeirizada, começando  por sua própria nomenclatura. Antes do “agronegócio”, a palavra “agribusiness” ditava o conceito. O termo nasceu nos Estados Unidos, no ambiente acadêmico da Universidade de Harvard. 

Caio Pompeia explica no livro “Formação Política do Agronegócio” (Elefante, 2021): “No contexto em que a noção de agribusiness foi criada, destaca-se a convergência de atores com experiência e posições tanto na academia quanto nas corporações e no governo. Nos anos 1940, um grupo de acadêmicos da Harvard Business School , tendo à frente o decano Donald K. David, mantinha a ideia de criar uma área disciplinar que tratasse das relações entre agriculture [agricultura] e business [negócio], que se intensificaram nos Estados Unidos”. O termo que surge com o conceito norte-americano “agribusiness“, por aqui foi aportuguesado e tornou-se  conhecido como “agronegócio”.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a instabilidade econômica se tornou agressiva e o bem estar coletivo estava em risco, deixando um saldo de fome, mortes, famílias arrasadas e a escassez de mantimentos. É neste contexto que nasce a “Revolução Verde”, que em sua concepção de aumento de produção, defendia o uso de fertilizantes, agrotóxicos e outras tecnologias, apoiada no discurso de “combate à fome”. Era o início de uma grande mudança agrícola no mundo.

Hoje, o  agronegócio possui uma rede de articulações que vai de empresas às salas de universidades, com o incentivo à pesquisas em suas ações. Do campo a esfera política, como a capacidade de influenciar o poder legislativo e executivo,  contando com órgãos representativos como a Associação Brasileira  do Agronegócio (Abag Frente Parlamentar da Agropecuária), o Fórum Nacional da Agricultura (FNA) e o Conselho Superior do Agronegócio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Cosag/Fiesp). Uma cadeia movida a interesses político-econômicos e exploração de muitas regiões.

Mas, e o Piauí?

Ao total, 33 municípios piauienses pertencem ao mapa do Matopiba, representando 11% de sua área territorial. A seleção dos municípios presentes no Plano de Desenvolvimento do Matopiba foi realizada por meio de procedimentos numéricos e cartográficos, com o uso de satélite para integrar os dados agroecológicos e socioeconômicos. Todos os municípios piauienses  selecionados no projeto encontram-se na região Sul do Estado.

 

O boom das commodities

O agronegócio não se resume apenas a produção de alimentos. Para Valéria Silva, que além de pós-doutora em desenvolvimento, agricultura e sociedade é também agricultora agroecológica,  o segmento incorpora obrigatoriamente em suas ações o desmatamento, refletido por exemplo, no prejuízo aos biomas. “É o progresso advindo da ideia de que nós somos apartados da natureza”, comenta. “Que para o ser humano crescer e adquirir condições e recursos para viver neste planeta, nós temos que acabar com a natureza, dominar a natureza, usar a natureza e não nos sentirmos parte dela”, diz a pesquisadora.

Ela também cita que essas ações são apoiadas por um posicionamento político bem definido: a defesa dos seus interesses. A “bancada ruralista”, como ficou conhecido o grupo de parlamentares cujos interesses versam sobre  a defesa de pesticidas, flexibilização às leis de proteção ambiental e fundiária, busca viabilizar o acesso à políticas públicas para o desenvolvimento dos seus setores de interesse. No bloco, compondo o grupo da região Nordeste, estão os deputados Átila Lira (PSB), Júlio Cesar (PSD), Marcos Aurélio Sampaio (MDB), Margarete Coelho (PP) e os senadores Ciro Nogueira (PP) e Marcelo Castro (MDB).

O agronegócio também atua em como o poder é distribuído no Brasil na esfera geopolítica internacional, principalmente no que diz respeito ao comércio. Em uma análise histórica, ela diz que o atual contexto se equipara à mesma situação do Brasil colônia, uma vez que o país continua vendendo matéria-prima, no caso dos commodities, originária do agronegócio. “No Piauí, quem é organizada por aqui é a Bunge, instalada no sul do estado, que concentra a compra do Piauí inteiro praticamente, e uma bancada política”, comenta.

“Sobre a terra há de viver sempre o mais forte”

 A criação do Matopiba e o avanço do agronegócio no Piauí vendeu a promessa de geração de novas oportunidades, emprego e renda e até ascensão de uma “nova classe média no campo”. Antes, muitos pequenos agricultores conseguiam viver em suas terras, retirando delas o suficiente para o sustento familiar. Após as mudanças provocadas pelo agronegócio, muitas dessas famílias precisam viver com medo e perseguidas em seu próprio chão, ameaçadas por fazendeiros e empresários interessados pelas terras produtivas do cerrado.

A promessa inicial era de desenvolvimento e benefício para os brasileiros. O que se vê, entretanto, tem sido o contrário: o aumento da concentração da propriedade da terra na mão de grandes empresários, favorecidos por um modelo de desenvolvimento que exclui a maioria da população.

O propagado modelo adotado em Matopiba não tem se mostrado sustentável, pois devasta biomas e o bem-estar das comunidades tradicionais. Paralelo a isso, milhares de pessoas foram colocadas em situação de extrema pobreza.

Com isso, o cenário vem mudando nas encostas das chapadas e nos “baixões”, que compõem os cerrados piauienses. Ali vivem comunidades tradicionais, formadas por agricultores familiares que ainda fazem o uso tradicional das terras. São eles, que trabalham dia e noite e são obrigados a conviver com o risco dos agrotóxicos, com o assédio dos funcionários pagos por fazendeiros e especuladores interessados nas terras ocupadas por eles, que vivem as consequências da expansão do agronegócio no Matopiba.

Na divisa com o Piauí, o Sítio São Francisco está localizado no vizinho estado do Ceará. Lá, seu Nazareno Barbosa, 55 anos, vive do cultivo de agricultura orgânica desde 1997. Em sua clientela estão as cidades de Teresina e Campo Maior. 

Com uma área de mais de 20 hectares, seu sítio produz de 7/8 toneladas, duas vezes por semana. Ao contrário da monocultura, a produção orgânica se baseia no plantio de uma variedade de alimentos, chegando a 70 tipos diferentes.

O manejo com a terra é de família. Seus pais plantavam e com o passar do tempo, ele assumiu a função. Como boa parte dos agricultores, apresentado às promessas de lucro e facilidades do agronegócio, produzia convencionalmente, com uso de agrotóxicos, mas hoje sua produção é baseada em orgânicos.
     
Com foco no antigo modo de cultivo, aponta as diferenças: “Onde o convencional chega, desmata, queima e degrada tudo para entrar com essa exploração, esse tipo de cultivo (monocultura)”. Assim como o Ceará, o Piauí vai construindo seu percurso nesta história, integrando o agronegócio ao passo que também procura maneiras de se reconectar a seus antigos modos de produzir. 

Na fartura do agronegócio, muitos ganham pouco, e poucos ganham muito. “Ganham os fazendeiros; ganham os prefeitos de onde estas empresas estão instaladas; ganham os bancos, das financeiras do agronegócio; os operadores do mercado internacional que se fazem em cima disso; ganham as bolsas que operam com os commodities; ganha a China, que compra o nosso milho e soja devido a uma alta demanda por alimento; ganham os políticos, que têm suas campanhas financiadas pelo agronegócio”, encerra Valéria Silva.

 

*Trecho do livro Torto Arado (Todavia, 2019), de Itamar Vieira Junior.

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Categorias: Reportagem

Geysa Silva

Jornalista, consultora de marketing político e especial Experiência Piauí.

1 comentário

Acácio Véras · 14 de junho de 2021 às 22:26

Boas informações e parabéns pela matéria. O preço do abuso exploratório de grandes empresa quem paga é a sociedade, lamentável!

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