Quando Rayanne Adorno conheceu Malik Roy, em um aplicativo para viajantes, as recomendações de quem tinha convivido com o homem em imóveis beiravam as cinco estrelas. As plataformas funcionam como qualquer outra rede social, mas com foco em locação de cômodos por temporadas. Malik passava como um cara legal, divertido e engraçado, segundo o feedback dos usuários. Não parecia nada suspeito. Até que o francês desembarcou em Teresina, em 2019, e o destino lhe levou a conhecer Rayanne.
A modelo não alugava imóveis, mas frequentemente o via nas plataformas. Ela costumava utilizar os aplicativos em viagens. Quando o conheceu pessoalmente, constatou que o homem era aquilo que os comentários positivos diziam. As coisas mudaram um ano depois, quando, já em um relacionamento, decidiram se mudar para a Hungria, em Budapeste. Rayanne estava feliz: iria impulsionar sua carreira, conhecer novas pessoas e viver com o namorado, que a fazia bem. Malik também estava contente e a incentivava nos planos. “Ele sempre dizia estar do meu lado”, relembra.
Rayane começou a procurar emprego antes de sair do Brasil. Apesar de ter onde ficar quando fosse para Hungria, na casa de Malik, ela sempre gostou de ter sua independência. Logo arranjou amigos, começou a trabalhar e se habituava ao novo país. Foi esse sentimento que começou a incomodar o namorado que, a cada dia, parecia estar insatisfeito com o sucesso da modelo. Quando finalmente ela conseguiu fechar contrato em uma agência, o homem explodiu. O dia que seria de comemoração, virou um pesadelo.
“Ele surtou comigo”, conta ao oestadodopiaui.com. “Me xingava, jogava objetos em mim, dizia que eu não seria nada. Precisei me esconder em outro cômodo para ele não me machucar”. Foi a primeira e última vez que ele agrediu Rayanne. No dia seguinte, ela foi embora da casa de Malik.
O que a modelo achou que seria o fim, virou o começo de uma saga de perseguição. Ainda na Hungria, a modelo buscou a embaixada para pedir ajuda. Realizou boletim de ocorrência no país, o que não resultou em muita coisa. “A polícia duvidava do meu depoimento, enquanto ele vendia a ideia de que eu era uma brasileira tentando dar o golpe em um gringo”, conta.
Para fugir das agressões, ela voltou ao Brasil e abandonou todas as oportunidades que tinha conseguido no lugar. As propostas, por mais promissoras que fossem, não valiam sua paz. “Eu fui embora, só não esperava que ele viesse em seguida”.
Em Teresina, Malik descobria os lugares e endereços da família de Rayanne. Enviava ameaças e mensagens assustadoras para a modelo. Qualquer pessoa que se aproximasse da mulher era alguém de quem ele se aproximava para disparar mensagens de cunho racista e misógino contra ela. A situação saia de controle: até pessoas desconhecidas eram abordadas por Malik. Ele contava sempre a mesma história: um estrangeiro que foi enganado por uma modelo brasileira.
Por conta disso, Rayanne mudou de endereço várias vezes para se sentir protegida. Nem mesmo a cidade onde nasceu, cercada por amigos e familiares, parecia mais um lugar seguro. Ao longo de três anos, ela deixou de frequentar lugares públicos. Sua vida passou a ser uma espécie de prisão. “Não teve um dia nesses três anos em que eu não recebesse uma mensagem de alguém que foi abordado por ele”, declara. A mulher suspeita de que o ex namorado não agia sozinho. O volume de mensagens e a quantidade de pessoas que receberam algum conteúdo supõe que mais alguém possa ter ajudado o stalker.
Uma série de denúncias foram feitas ao longo desse tempo. As mensagens abusivas que ele mandava para pessoas desconhecidas alimentam as provas de racismo e violência contra a modelo. Mas Malik não possuía um endereço fixo e evidências mostravam que ele circulava em estados brasileiros diferentes como São Paulo e Belo Horizonte. Enquanto ele estava livre pelo mundo, Rayanne permanecia presa e com medo.
Até que na última sexta-feira (15), em um supermercado em Itajaí, litoral norte de Santa Catarina, o francês foi preso. A cena circulou por toda a internet. A Polícia Civil cumpria um mandado de prisão expedido pela Justiça do Piauí. Se por um lado Rayanne respira um pouco mais aliviada, a prisão preventiva ainda não marca o fim dessa história. Agora começa a nova fase, uma guerra judicial. “Ele vai prestar depoimento e tenho que apresentar as provas. A decisão fica na mão da justiça”.
Um crime nada silencioso
Durante os últimos três anos, Rayanne foi vítima do crime de perseguição – conhecido também como “stalking” (em inglês). A pena para quem for condenado é de seis meses a dois anos de prisão, mas pode chegar a três anos com agravantes, como crimes contra mulheres.
As perseguições, no entanto, sempre ocorreram, mas antes o crime era enquadrado em um artigo da Lei das Contravenções Penais. A pena era apenas uma multa ou prisão por 15 dias a dois meses. Agora, a prática de “stalking” virou crime com tipificação específica.
O delegado Matheus Zanatta, gerente da Delegacia de Polícia Especializada, explica que esse crime é caracterizado quando há ameaça à integridade física ou psicológica da pessoa. Quando alguém tem a vida restringida, dificuldade de locomoção, tem a liberdade ou a privacidade como alvo, as ações já são consideradas criminosas.
Um modo de operação dos perseguidores é praticar esse crime no ambiente virtual. E possuem um ciclo, aponta Zanatta: as tentativas de contato geralmente começam pela internet. Com o tempo, o autor passa a tentar encontrar com a vítima pessoalmente e por fim, tenta constrangê-la ao aparecer na porta de casa ou do trabalho.
Stalkings cometidos contra mulheres possuem agravantes. Isso porque, 75,9% das ocorrências, de acordo com a ONG Safernet, são vítimas do sexo feminino. Quando o crime for praticado no contexto da violência doméstica e familiar, o que remete à Lei Maria da Penha, a pena pode ser aumentada. O dado reforça os números de crimes de gênero no Piauí, onde por dia, cerca de 18 mulheres foram vítimas de violência doméstica.
No caso de Rayanne, a regra não fugiu da exceção. A forma como Malik agia e perseguia a modelo não era nada silencioso. Nas suas redes sociais, o francês a insultava publicamente com comentários racistas e difamações. Qualquer pessoa tinha acesso ao conteúdo criminoso. A liberdade de praticar o crime e a impunidade ao longo dos anos é o que ainda assusta Rayanne. E ela ainda teme que, no Piauí, na Hungria, ou em qualquer outro lugar do mundo, caso seja solto, o ex-namorado consiga praticar as ameaças que lhe atormentaram nos últimos meses. “Minha paz ainda é uma resposta incerta, mas tenho esperança de que um dia isso se torne meu passado e eu possa finalmente ter um futuro sem medo”, finaliza à reportagem.
Denuncie
As mulheres vítimas de qualquer violência podem denunciar pelo Disque 180. A ligação é gratuita e o atendimento funciona 24h, todos os dias da semana.
Nos municípios as denúncias podem ser feitas nas delegacias de polícia. Outra opção é o aplicativo Salve Maria. As denúncias de violência contra a mulher podem ser feitas, de forma anônima, pelo site www.pc.pi.gov.br.
1 comentário
Leon Theremin · 31 de julho de 2022 às 10:59
Considerando o perfil da vítima e o fato de, aparentemente, o crime ter se limitado ao ambiente digital, é muito possível que se trate de um engodo dos criminosos do Dogolachan.
O linguajar usado é característico do grupo, bem como usar de meios virtuais para mascarar a identidade e fazer inocentes serem figurados como criminosos.
Eles são capazes de clonar todos os dispositivos e dados de Brasileiros ou estrangeiro, o que facilmente permite que finjam de modo convincente que são quem não são – pelo menos para despreparados em indentificar esse tipo de acontecimento.
Rayanne Adorno merece justiça, mas a justiça deve ser justa e identificar o real culpado.