Idelmar Cavalcante não fez grandes planos para o primeiro dia do ano de 2023. Reservou, no entanto, a tarde para ver o presidente eleito, Luís Inácio Lula da Silva (PT), subir a rampa do Planalto da Alvorada, rumo ao maior cargo do executivo pela terceira vez em duas décadas. Com 68 anos, o ex-bancário não é de se emocionar, mas achou bonito quando, antes de assinar o documento de posse, Lula quebrou o protocolo e contou uma história: usava uma caneta presenteada por um certo piauiense. Idelmar não imaginava que, minutos depois, uma foto sua ao lado de Lula nos anos 80 circularia nas redes sociais atribuindo a ele o presente. Na imagem, ele segura o filho no colo – e, o presidente, uma caneta.
Idelmar, que não tem redes sociais, foi avisado da fama repentina pelos filhos. Ele faz parte da mesma geração de militantes do Partido dos Trabalhadores da qual pertencem Wellington Dias e Regina Sousa, ainda no Sindicato dos Bancários do Piauí. Decidiu não seguir carreira política, optou pela luta nas bases. Chegou a fundar uma sede do PT em São Francisco do Piauí, mas, há alguns anos, se aposentou da militância para viver em Teresina. “A gente até incentivou ele a assumir a identidade”, brinca Idelmar Cavalcante Júnior, o filho de Idelmar, à reportagem.
De volta ao poder, Lula contou que a lembrança é de 1989. Em visita à Teresina, na frente da igreja São Benedito, um cidadão piauiense o interpelou para lhe presentear com uma caneta. O presente tinha um motivo: se eleito naquele pleito da década de 80 teria que assinar o documento de posse com a própria. Mas Lula não ganhou, nem na disputa de 89, nem em 94 e 98. Quando eleito, em 2002, quase uma década depois do presente, não encontrou a tal caneta piauiense e assinou com a do senador Ramez Tebet, pai de Simone Tebet.
As eleições presidenciais do ano passado se consagraram como a disputa mais apertada em um pleito presidencial. Lula venceu com a menor diferença percentual desde as eleições de 89, com pouco menos de 2%. Seu grande trunfo foram os votos do Nordeste, contabilizando 69,34% dos votos válidos na região – única em que ele superou o ex-presidente Bolsonaro. No Piauí, Lula bateu seu segundo recorde. No primeiro turno teve 74% e, no segundo domingo de eleição, aumentou mais de dois pontos percentuais, sendo o Piauí o estado com melhor desempenho do petista nas eleições gerais. De frente para o documento de posse, Lula justifica: “E essa caneta, Wellington (Dias), é uma homenagem ao povo do Piauí”.
Fernando Menezes viu de Altos, há 30 quilômetros de Teresina, o presidente citar seu estado. Ele garante que desde a década de 80 percorre os passos de Lula para lhe entregar pessoalmente presentes. Bonés, blusas, broches e símbolos nas cores vermelhas fazem parte do arsenal de mimos. Até Gleisi Hoffmann, a presidenta do Partido dos Trabalhadores, foi alvo da gentileza. Quando veio para Teresina acompanhar Lula em agosto de 2021, Menezes colheu um punhado de flores do quintal de um desconhecido para presentear Hoffman. “Se eu fosse explicar, seria a minha linguagem de amor”, brinca à reportagem.
O petista conta que, em 1989, estava lá, em frente à igreja para encontrá-lo. Naquele dia em especial, ele não havia preparado presente algum, mas tinha a caneta preferida no bolso da blusa. Não hesitou em entregá-la e lembra, com exatidão, de ter pedido para o presidente assinar o documento caso fosse eleito naquele ano. “Essa história faz muito tempo, mas assim que ele disse na televisão, veio na minha memória com exatidão”, relembra à reportagem.
Na tarde da posse, dia 1, Menezes contava aos quatro ventos, emocionado, a homenagem de Lula. Ele, que havia decidido se aposentar da militância, declara ter pretensão de voltar mais ávido que nunca. “Percorri 170 cidades piauienses para dar voto em Lula, sou um apaixonado”, conta. “Eu queria descansar, tô com 68 anos, elegê-lo pela terceira vez era minha última missão, mas acho que isso foi um sinal”, complementa. “Quero cobrar e vê-lo usando a nossa caneta”.
O jornalista Kenard Kruel conta uma história bem diferente das anteriores. Em 1989, segundo ele, o PT no Piauí cabia dentro de um Fusca. Nesse veículo iam ele e outros companheiros panfletar para o comício de Lula em Teresina. Em frente à igreja São Benedito, a qual o presidente se referiu, havia um bar onde os boêmios se encontravam. Quando Lula chegou, até Lourdes Melo apareceu, querendo um autógrafo nas páginas do jornal do Partido da Causa Operária (PCO). Acontece que Lula não tinha caneta, mas estava ao lado de Kenard que, sozinho, colecionava mais de cinco mil canetas.
“Vivo uma relação freudiana com canetas. No bolso da camisa, não carrego menos de dez”, declara Kruel. “Lula viu uma e se engraçou, me pediu, e cedeu o autógrafo para Lourdes”, destaca. Mas quando Lula foi devolver a caneta, o jornalista não aceitou. Disse que ele poderia ficar para assinar o documento da posse no fim daquele pleito. Emocionado, o presidente aceitou. A reportagem entrou em contato com Lourdes Melo. Ela acredita que a história tem fundamento, mas não concorda com detalhes. “Acontece que eu sempre ando com canetas no bolso também, sempre na cola do Lula”, declarou à reportagem. “É provável que a caneta seja minha, mas não quero ela de volta. Deixe com nosso presidente”. Agora a própria Lourdes se prepara para reivindicar seu lugar como uma das possíveis donas da caneta piauiense.
Leia mais: Lourde Melo, pop anticapitalista
Quem viveu as primeiras gerações de militância petista no Piauí conta que Fabiano de Cristo era “companheiro” aguerrido. Já há algum tempo se afastou da causa e do partido, e migrou para o outro lado: virou um apoiador convicto de Jair Messias Bolsonaro. Também comungou para o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016. Seu passado, no entanto, dá conta do entusiasmo no dia em que presenteou Lula com uma caneta em Teresina, segundo contam amigos e correligionários do seu ex-partido.
A cerimônia de posse ainda ocorria quando conhecidos e amigos começaram a apontá-lo como o dono da caneta, no mais perfeito plot twist do amor que virou ódio. A reportagem tentou entrar em contato com de Cristo, mas não obteve retorno e mantém o espaço aberto para futuros esclarecimentos.
A origem da caneta pode até ser uma fábula, mas a moral da história é carregada de simbologia. “Mesmo que não haja comprovação exata da autoria, a origem mais plausível é que seja de um homem simples, um militante, uma pessoa aguerrida nas causas petistas”, explica o linguista Laerte Magalhães. O próprio retorno do Lula, segundo o estudioso, como sua ascensão e passado, estão fundados na perspectiva das pessoas humildes. A caneta, por si só, seria uma representação desse discurso. Segundo Magalhães, como todas as histórias que envolvem grandes assuntos, é natural que surjam diversas versões e autorias. Por outro lado, pode ser perigoso. “Em tempos de redes digitais, o prestígio e a evidência também se tornaram uma moeda de valor social”, destaca. É possível que outros atores apareçam como personagens dessa velha história, na qual não importa muito o objeto – mas sim, o significado.
0 comentário