sexta-feira, 26 de abril de 2024

Uma casa para a carnaúba

Em Várzea Queimada, saber ancestral e arquitetura de impacto viram principal fonte de renda da comunidade

26 de dezembro de 2022

O designer Marcelo Rosenbaum abriu o mapa em papel e apontou uma mancha evidenciando o Nordeste do Brasil: era ali, em uma região com baixíssimo IDH, que ele desenvolveria, ao longo de uma década, uma criação coletiva capaz de mudar a realidade de quase mil pessoas no sertão piauiense. O ano era 2011 e ele chegaria, pela primeira vez, à Várzea Queimada.

A comunidade fica a 27km de Jaicós, município no centro-sul piauiense. Pertence à zona rural da cidade e é nacionalmente conhecida pela grande incidência de surdez entre os moradores. Em Várzea Queimada quase todas as pessoas são parentes e desenvolveram, sozinhas, uma língua própria de sinais, a Cena. Essa história já contamos aqui.

Várzea Queimada: comunidade tinha um dos piores IDH do país (Foto: Tatiana Cardeal)

Além do parentesco, os moradores da comunidade compartilham também um saber ancestral: a trama, nome dado ao trançado feito com a palha da carnaúba. “Nós não chegamos já entendendo a comunidade como uma unidade produtiva”, conta Rosenbaum. “Nós chegamos lá e perguntamos: o que a sua avó fazia?”. Na casa de pessoas como dona Francisca, um cesto centenário – ou “boió”, como chamam por lá – trançado por sua avó, costumava ser escondido aos olhos das visitas. “Era tudo o que a gente queria!”, lembra o designer.

“Surrão” ou “boió”, cestos produzidos artesanalmente com a palha da carnaúba (Foto: Tatiana Cardeal)

Apesar de ficar conhecido por transformar casas num quadro de TV, na Globo, aos sábados e por mais de uma década, Rosenbaum é um dos nomes por trás do A gente transforma, que assina projetos nos quais o design é utilizado como ferramenta de mergulho na cultura dos povos e resgate de saberes – o objetivo é tentar construir um futuro com possibilidades mais justas e sustentáveis.

Marcelo Rosenbaum na última viagem à comunidade (Foto: arquivo pessoal)

Mas, antes de Rosenbaum, quem vislumbrou o potencial da comunidade foi Rosa de Viterbo Cunha, uma apaixonada pela produção artesanal piauiense. Em 2009, como gestora do Sebrae Piauí, ela mapeava os talentos artesanais do estado. “O segmento que encontramos lá já era a sinalização tanto do artesanato em fibra quanto do aproveitamento da borracha”, diz a consultora. O Sebrae entrou com o estudo de viabilidade e um diagnóstico socioeconômico da comunidade, ajudando sobretudo na visão empreendedora de quem já tinha o mais importante: o coletivismo e a capacidade. “Várzea Queimada tem uma cultura muito forte e um potencial de liderança”, destaca Rosa. “O associativismo chegou para elas como se fosse uma luva”.

Em fevereiro de 2011, com auxílio do Sebrae, as artesãs da comunidade fundaram a Associação de Mulheres da Várzea Queimada, da qual Marcilene Barbosa é a líder desde 2012. “Além da característica de grande líder, Marcilene tem a capacidade de se doar para um projeto coletivo”, observa Rosa. Hoje, 28 mulheres entre 20 e 77 anos fazem parte da associação e estão envolvidas direta ou indiretamente no trabalho com a matéria-prima oriunda da carnaúba. Em 2017, Marcilene ganhou o Prêmio Sebrae Mulher de Negócio.

Glow up de Várzea Queimada

Marcilene Barbosa aprendeu a fazer a trama com a mãe, que por sua vez aprendeu com a avó, que também aprendeu com a bisavó – e assim vai-se mais de um século de história. “Fazíamos por necessidade, nenhuma de nós se considerava artesã”, diz à reportagem. “Minha mãe teve que viver 70 anos para só agora reconhecer isso como artesanato”.

As esteiras de palha, bem como o pó extraído da carnaúba, eram vendidos na feira livre de Jaicós. “A esteira era usada como uma espécie de plástico bolha, para embalar produtos e depois ia para o lixo!”, explica Rosenbaum num misto de consternação e espanto.

Após 12 anos das primeiras oficinas, do contínuo resgate de saberes das artesãs, o projeto inseriu o nome da comunidade nas principais feiras de design e artesanato do mundo – hoje, ela é reconhecida como uma região que produz artesanato a partir de um saber ancestral. No Google, as peças produzidas em Várzea Queimada aparecem em exposições de São Paulo a Miami. “A comunidade entende o design como uma linguagem, como uma ferramenta que a conecta com a ancestralidade”, diz Rosenbaum.

As peças de artesanato em palha e borracha de pneu deram vida a uma coleção do Clube de Colecionadores de Design do Museu de Arte Moderna de São Paulo, o MAM, num processo inédito de imersão com artesãos e designers na comunidade. Em 2016, o banco Bradesco patrocinou a produção de livro, documentário e site “Várzea Queimada – espírito, matéria e inspiração”, viabilizado pelo Ministério da Cultura via Lei Rouanet.

Hoje, toda a produção escoa para São Paulo, onde a comunidade mantém um representante comercial. Por ano, cerca de 100 mil “olhos de palha” são utilizados e quatro mil peças – entre cestos, esteiras, luminárias, tapetes e bolsas – são vendidas para lojas de design e decoração. O artesanato das mulheres é a principal fonte de renda da região.

Coleção TOCA na Casa Vogue Miami, 2016 (Foto: arquivo pessoal)

Da carnaúba, tudo se aproveita: a palha cobre casas ou solos agrícolas. A casca serve como lenha. Os troncos, de duração indefinida, são úteis para a construção civil. Suas folhas produzem uma cera que, extraída, é usada na fabricação de baterias a vinil. O Brasil é o único país no mundo que produz cera de carnaúba – são 18 mil toneladas por ano, sendo Piauí, Ceará, Maranhão e Rio Grande do Norte os maiores produtores.

O fruto, colhido maduro e submetido à secagem, é usado para extração de óleo ou vira alimento para o gado. O pó também é bastante utilizado por indústrias de cosméticos e até o caule e as raízes têm uso medicinal. Pelo seu ciclo sustentável, ficou conhecida como “árvore da vida”. A planta, que chega a 15 metros, para as mulheres de Várzea Queimada, representa empoderamento.

 

Arquitetura de impacto

A força da mão-de-obra feminina inspirou a arquitetura da Casa da Carnaúba, projeto em andamento na comunidade. A iniciativa, do Rosenbaum Arquitetura, A gente transforma e Associação das Mulheres de Várzea Queimada, pretende abrigar a atividade de extrativismo sustentável do pó da carnaúba e, de quebra, beneficiar também a secagem e estocagem da palha para o artesanato.

Projeto Casa da Carnaúba (Imagem cedida pelo instituto A gente transforma)

No papel, a Casa da Carnaúba tem dois ambientes circulares, interdependentes (a Casa de secar e a Casa de bater e guardar a palha), interligados por uma estrutura de copa, banheiro e espaço para armazenamento do pó. Visto de cima, o espaço que tem a finalidade de cultivar a tradição do trabalho coletivo das mulheres revela a forma de um útero, uma espécie de metáfora arquitetônica que reforça o poder feminino da criação.

Artesão trabalhando na trama (Foto: Áureo Tupinambá)

 

O projeto é financiado pela L’oreal, empresa brasileira de cosméticos, e Brasil Cera – principal compradora do pó de carnaúba extraído hoje em Várzea Queimada. Na última safra foram quase uma tonelada e meia do produto.

“Tínhamos uma grande dificuldade no preparo desse material”, explica a líder Marcilene. “Agora mesmo, é época de chuva, e palha não combina com umidade”, completa. “A casa que usamos atualmente é bem antiga e inadequada para essa finalidade”, segue dizendo a artesã. “O novo espaço será ideal para guardar nossa produção e o material, garantindo uma extração de qualidade, livre de impurezas e perdas por exposição excessiva ao sol”.

Para seguir no conceito “arquitetura de impacto”, o material para construir a Casa da Carnaúba está sendo produzido na própria comunidade. Em parceria com um projeto de extensão da Universidade Federal, a comunidade está usando uma prensa para fazer tijolos, utilizando o barro daquele próprio chão.

Primeiros tijolos ecológicos produzidos com o barro da comunidade (Foto: Áureo Tupinambá)

Nessa etapa, o arquiteto piauiense Áureo Tupinambá teve importante participação. “Caminhei quilômetros ao longo de um rio que não é perene, o solo é muito arenoso e toda a água é absorvida em seu leito”, conta. “Trouxe algumas amostras do solo, que foram analisadas pela professora Luciana Barbosa” (professora do Departamento de Recursos Hídricos, Geotecnia e Saneamento da UFPI). Os primeiros testes com o tijolo ecológico apontaram a necessidade de uma argila melhor.

Pesquisadores da UFPI observam produção dos tijolos (Foto: Áureo Tupinambá)

Após os testes com a engenheira civil, os tijolos prontos e curados foram testados em laboratórios de física da instituição. “Todo material produzido com esta finalidade deve ser submetido a ensaios destrutivos para garantir a segurança do projeto”, explica Antônio Sales, físico e professor do curso de Engenharia Mecânica da UFPI. “Os primeiros ensaios deram os parâmetros para novos tijolos que serão testados agora em janeiro, mas já se mostram promissores”, explica o pesquisador.

A caravana de pesquisadores esteve em Várzea Queimada acompanhando Rosenbaum no último mês de novembro. Jovens, que eram crianças quando o projeto chegou por ali, hoje veem nas ações uma alternativa para o êxodo rural – que era, na verdade, uma forma de fugir da região com pouca ou quase nenhuma oportunidade. “Considero que hoje a principal moeda na comunidade é a troca, o afeto”, comenta Áureo que, entre muitas idas à Várzea Queimada estabeleceu um contato próximo com os moradores. “Tico, um rapaz jovem que foi pedreiro em São Paulo, está de volta à comunidade e agora que aprendeu a técnica, não quer mais sair da região onde nasceu”, revela o arquiteto. “Penso que o que fazemos lá não é resgate: é reconquista”.

Em Várzea Queimada, a ciência que extrapola os muros da universidade pode até ter a pretensão de impactar – mas mestres e professores acabam saindo de lá aprendendo mais do que ensinando. “Esse projeto é com certeza um marco social para Várzea Queimada”, opina Maria Eduarda Coutinho, arquiteta e urbanista nascida em Jaicós. Seu projeto de pesquisa no mestrado em Antropologia da UFPI pretende estudar a técnica de produção artesanal da região como patrimônio imaterial. “É inegável que, através do projeto, as mulheres artesãs conseguiram enxergar a importância do saber fazer que elas carregavam e se colocaram como protagonistas da sua produção cultural”, comenta. “Para mim, é muito importante ver um pequeno povoado no interior do Piauí, perto de onde estão minhas raízes, sendo gradativamente valorizado por isso”.

A comunidade busca no Iphan o registro reconhecendo a sua técnica como patrimônio imaterial da cultura brasileira.

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Categorias: Especial

Luana Sena

Jornalista, mestra e doutoranda em comunicação na Universidade Federal da Bahia.

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