Nos últimos 15 anos, dores constantes fizeram parte da rotina de Jeanete Fortes, diagnosticada com fibromialgia – uma doença reumatológica que afeta a musculatura e acomete 2% da população. “Eu tinha uma vida sem paz, vivia mal humorada, nem descansar eu conseguia direito”, relata à reportagem. “Eu sentia dor até para dormir”.
Certa vez, foi levar remédio para o pai, que sofria de Alzheimer e fazia uso do óleo de canabidiol – também conhecido como CBD, extraído da Cannabis – para frear o avanço da doença no sistema neurológico. Leu brevemente que o quadro da sua doença poderia ser aliviado pelo mesmo óleo, uma vez que a doença se enquadra no espectro de doenças neurológicas. Experimentou, logo no início da tarde. Ao cair da noite, tomou um susto quando se deu conta: a dor havia sumido. “Eu não conseguia dormir porque as dores não permitiam”, descreve Jeanete. “Nesse dia, eu dormi”.
A defensora pública foi uma das presentes na Marcha da Maconha, neste último sábado (29), em Teresina. Desde 2020, o evento não acontecia devido a pandemia da Covid-19. Na ocasião, quase 100 pessoas migraram para a Avenida Frei Serafim, chamando atenção da população e do poder público para a legalização da maconha – seja para fins medicinais ou recreativos.
No final do ano passado, a Assembleia Legislativa do Piauí (Alepi) arquivou o Projeto de Lei que tinha a intenção de liberar o uso de medicamentos à base do óleo CBD no estado. Com a decisão, o projeto não poderá mais ser discutido na Casa. No Brasil, pouco menos de 200 pessoas possuem o direito na justiça para permissão do cultivo da maconha para fins medicinais. As permissões funcionam como habeas corpus preventivos, uma vez que é proibido no país o plantio da Cannabis, com pena de 5 a 15 anos de reclusão.
Entre as justificativas para o arquivamento do PL, o deputado estadual Júlio Arcoverde (Progressista) afirmou que é necessário que o projeto tramite no Congresso Nacional para que seja avaliado a nível estadual. Em junho de 2021, a Câmara dos Deputados Federais analisou o Projeto de Lei 399/15, que aprovou a legalização do cultivo no Brasil para fins medicinais, veterinários, científicos e industriais da Cannabis. Mas o assunto não caminhou para o Senado, tampouco para as canetadas do presidente Jair Messias Bolsonaro (Partido Liberal). A discussão segue parada a nível nacional e, portanto, no Piauí.
Wesley de Carvalho, representante da Rede Reforma – coletivo de juristas que atuam para discutir a política de drogas – aponta que o assunto é tratado com preconceito. “Nossa região ainda é muito provinciana”, destaca o advogado. “Assuntos que envolvem drogas acessam a população sem informações necessárias para entender que plantas como a maconha são assuntos de saúde pública”, pontua. Dias depois do arquivamento do PL, o deputado Carlos Augusto (PL), declarou em entrevista à TV Cidade Verde: “Não podemos ter plantação de maconha indistintamente nesse país porque estamos longe de estar preparados para isso”. A fala limitou-se a uma opinião, não explicando mais sobre o assunto nem tampouco trazendo soluções para quem busca na planta uma alternativa médica.
Enquanto isso, quem precisa do CBD, recorre a outros subterfúgios. Emelly Carneiro, de 21 anos, precisou se comunicar com pessoas de outros estados para ter o óleo. Uma ampola, de 5 a 10ml, pode custar entre R$200 a R$400 – quase o valor de uma parcela do Auxílio Brasil, benefício do governo federal. No ano passado, após uma dormência na boca, ela foi diagnosticada com síndrome de Bell – um inchaço no nervo facial que paralisa metade dos movimentos do rosto.
A medicação receitada foi corticoide e fisioterapia. Os remédios eram invasivos e a recuperação lenta. Entretanto, por saber do uso medicinal do canabidiol, apostou no óleo como antiinflamatório. Na primeira semana, Emelly já conseguia ver os resultados positivos. Quase um ano após o início do tratamento com o CBD, suspendeu o uso: “Não consegui mais pagar”, revela à reportagem. “É triste, porque foi somente com o óleo que consegui me alimentar, relaxar e estar praticamente curada”, complementa.
A legalização é, para muitos pacientes que utilizam a cannabis, a única esperança de ter menos custos para adquirir o óleo. Na família de João Barbosa, de oito anos, a tia Jamilly Rocha, que também é enfermeira, precisou se especializar para poder buscar o tratamento do menino diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Atualmente, a família compra o óleo importado e tem lutado para garantir a legalização da maconha – a matéria prima do óleo. Caso legalizada, Daniel Rocha e Erica Lages, os pais de João, poderiam plantar a erva em casa e extrair a substância para o tratamento do filho. “Enquanto não tiver ninguém da sua família necessitando, você fica com a cabeça fechada”, destaca Daniel. “Quando precisa, você se encontra aqui, na luta, na rua, por uma planta que salva vidas”.
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