quarta-feira, 8 de maio de 2024

Vibrando com a música

Tecnologia piauiense permite pessoas surdas sentirem a música, levando diversidade e inclusão para espaços culturais

19 de setembro de 2022

Misael da Silva colocou a camisa mais florida que tinha no guarda-roupa para dançar nos shows do Festival GiraSol, evento que aconteceu no último final de semana em Teresina. No ritmo da música, o jovem de 28 anos pula, balança e se diverte com os amigos. Ao lado dele, em ritmo frenético, estão João Victor e Kelly Lemos, saindo do chão de alegria. Todos são acometidos pela surdez ou audição reduzida, uma condição de nascença.

No meio da multidão, eles se misturam às atrações e ao público, e vestem um colete com sensores que brilham. Os amigos estão utilizando uma tecnologia desenvolvida pela startup piauiense TRON Robótica, um dispositivo capaz de perceber sons em dois níveis: o som ambiente e conectado ao celular. Com o aparelho, qualquer pessoa surda ou com deficiência auditiva, literalmente, vibra conforme a música. 

No festival Girasol, surdos puderam sentir a vibração dos shows por meio de tecnologia piauiense – Foto: Maria Cardoso

 

Não é a primeira vez que Misael faz uso do MR, nome que leva o colete. Anteriormente, no show do humorista Whindersson Nunes, também em Teresina, com a ajuda da intérprete de Libras (Língua Brasileira de Sinais), ele conseguiu sincronizar a emoção das risadas com a tradução das piadas. No show não foi diferente. “O aparelho faz com que a gente fique mais animado”, comenta o jovem, que também é professor de Libras. “Estar com outros surdos, compartilhando esse momento, faz tudo ficar ainda mais intenso. A gente conseguia perceber a batida da música e entrar no ritmo também”. 

O MR, projeto tecnológico, foi inspirado na história de uma menina cearense. Na escola, entre uma aula de robótica e outra, ela ousou questionar o futuro. Maria Rita, de 17 anos, é surda desde que nasceu, mas a limitação não a impediu de fazer coisas simples que dependessem do som, como dançar. Era apenas colocar a mão em qualquer dispositivo que estivesse tocando algo para, ali, conseguir ser abraçada pela emoção do som.

A estratégia da adolescente intrigou Gildário Lima. Como físico, ele entende que a música é uma estrutura matemática capaz de mudar sua linguagem. O som, enquanto onda mecânica, para o tato humano se torna quase palpável – assim como a percepção de Maria Rita, em experiências com a caixa de som. Em pessoas surdas ou com deficiência auditiva, essa sensação é ainda mais aguçada. Quando o MR é amarrado à cintura, automaticamente ele capta os sons ao redor, transformando em vibração que se distribui por todo o corpo por meio dos sensores. O som de um avião, uma buzina, um ruído, e até a música são traduzidos e reconhecidos de forma única pelos usuários do aparelho. 

“Parte da solução está no problema. A tecnologia é apenas um meio”, complementa Gildário. O questionamento de Maria Rita não poderia render melhor inspiração para o aparelho. MR, nome que batiza o equipamento, vem das iniciais do nome dela. 

Maria Rita, Gildário e Alex, no Rock in Rio, testando a tecnologia MR – Foto: Reprodução/ Mucura Criative

Assim como Misael, João Vitor e Kelly, ela também testou o equipamento em um festival musical. Há poucas semanas, ela testou o aparelho no Rock in Rio, na capital carioca. Whindersson Nunes é o principal incentivador financeiro da proposta. Mas Gildário explica que vai além disso: “Ele é um defensor da ideia e usa sua voz para incluir cada vez mais pessoas”, diz. Antes do show encerrar, em Teresina, Whindersson apontou para o grupo de amigos e disse: “Se o meu filho estivesse aqui, agora, eu queria que o mundo estivesse preparado para ele como está preparado para essa galera hoje”. 

Diversão como direito

Ana Patrícia Fortes tem 44 anos e é de Nossa Senhora do Piauí. Na cidade com pouco mais de dois mil habitantes, a falta de acessibilidade e as escassas programações culturais limitavam a diversão da mulher. Há pouco, ela veio morar em Teresina. Na festa do GiraSol, ela era uma das surdas utilizando o MR. Tímida e retraída, a cunhada da sua irmã, Jane Lima, explicou que foi preciso um mês para que ela pudesse se preparar e estar no evento. “É tudo muito novo para a Ana, como celulares, redes sociais e shows grandes como esses”, ressalta Jane à reportagem. 

Segundos após instalar o MR, Ana Patrícia já conseguia sentir as primeiras vibrações do show – Foto: Maria Cardoso

A população com deficiência auditiva severa, no Piauí, corresponde hoje a quase 4.750 pessoas – é quase a população de pequenos municípios no estado. O mesmo levantamento, feito em 2010 pelo IBGE, revelou que quase 37.474 pessoas possuem grande dificuldade em ouvir e outras 143.771 apresentam alguma dificuldade. Para contornar as dificuldades de acesso dessa população, eventos públicos e privados têm contado com a presença de intérpretes. Porém, em espetáculos musicais e teatrais, a presença desse tipo de profissional ainda é escassa. 

Não somente para as pessoas surdas, mas para pessoas com qualquer tipo de deficiência, no geral, os espaços culturais ainda não possuem estrutura adequada para proporcionar uma boa experiência. No último levantamento da Mobilidade Urbana Sustentável, Teresina foi considerada a 6ª pior cidade no quesito acessibilidade nas calçadas e ruas. A situação se repete nos outros municípios piauienses onde, sem acessibilidade, os espaços culturais acabam se tornando lugares distantes da população PCD.

É o caso da pacata Nossa Senhora do Piauí, onde Ana Patrícia nasceu. Lá, ela não teve formação em Libras. Participar de eventos culturais, festejos e celebrações sempre foi um desafio. Como muitos surdos que não tiveram acesso à educação formal, ela se comunica por gestos e expressões. Quando chegou em casa, depois da experiência com o MR no show, quase não conseguiu dormir. “Ela ficou emocionada, queria conversar sobre tudo que viu e sentiu no GiraSol”, relata Jane. “Ela abria e fechava as mãos, imitando as vibrações e se sentindo invencível”. Sentir o mundo através das ondas sonoras agora é seu superpoder.

Entre as atrações e o palco, Ana Patrícia vibrava com a música – Foto: Maria Cardoso

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Categorias: Especial

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