domingo, 5 de maio de 2024

A favela vibra (em inglês)

De Teresina para o mundo, estudante da periferia embarca na jornada de um latino-americano através da educação

01 de agosto de 2023

Toda periferia em qualquer cidade é repleta de histórias. Gente que se vai, gente que fica e se reinventa, gente que ri e que chora, que faz do limão uma caipirinha pra esquecer momentaneamente as mazelas. Os caminhos são sempre mais difíceis, geralmente com poucas oportunidades. Mas há quem se agarre no pouco para tentar transformar o cenário e inspirar outras pessoas. Mateus Vitor é um desses personagens. Ele saiu da vila Irmã Dulce, a segunda maior favela fruto de ocupação irregular de toda a América Latina, na periferia de Teresina, para ganhar o mundo, sendo um dos selecionados para a bolsa do Programa Fulbright de intercâmbio nos Estados Unidos. Ele embarca nesta quarta-feira, 02, com uma bagagem de coragem e persistência.

Mateus embarca nesta quarta-feira para a experiência de 9 meses nos EUA

Jovem, negro e de periferia, Mateus insistiu em ir na contramão da realidade dura da sua comunidade, com caminhos mais fáceis que poderiam lhe levar para outro mundo, lhe colocando numa triste estatística de jovens que enveredam no crime. Desde cedo, fechava os olhos para o que via de ruim da janela de casa para acender o brilho no olhar através dos livros. “Aqui em casa moravam seis pessoas e nossa avó e minha mãe sempre nos incentivaram a estudar bastante, pois queriam que nossas vidas fossem diferentes da que estávamos tendo naquele momento. Então me agarrei na educação como um escape para aquela situação”, lembra.

Para Mateus, foram os projetos sociais do governo que deram um suspiro maior para a sua família com uma perspectiva de mais oportunidades. O Bolsa Família, por exemplo, fez com que algumas contas de casa fossem aliviadas. E isso contava muito. “Eu estudava no bairro onde minha mãe trabalhava, cerca de 10km de distância de casa, e às vezes a gente tinha que ir e voltar a pé. Durante o ensino médio, eu participei de um curso de inglês, com intercâmbio, oferecido pelo Governo do Estado, num projeto chamado Aprender é uma Viagem. Infelizmente minha turma não viajou e nem recebeu certificado (risos tristes). Mas o aprendizado ficou!”, acrescenta.

A paixão pelo ensino e pela língua veio das suas experiências do curso de inglês. Após o ensino médio, Mateus conseguiu ingressar na Universidade Federal do Piauí para o curso de língua inglesa, mas com muita dificuldade devido os custos para se manter num ambiente acadêmico, mesmo sendo de ensino público. “Resolvi me inscrever nas bolsas de permanência, e depois me inscrevi no PIBID e PIBIC. Os anos na graduação foram fundamentais para eu decidir que tipo de profissional eu seria. Sou muito grato a alguns professores do curso que sempre me apoiaram e me incentivaram a dar o meu melhor e isso abriu minha mente para possibilidades que eu não enxergava antes”, conta.

Entre essas possibilidades surgiu a Fulbright, que ele conheceu através de professores que vinham dos EUA para o auxílio da língua nas universidades do Brasil. “Lembro de ficar encantado com uma galera estrangeira que estava ali para nos ajudar com nosso inglês e fazendo eventos e workshops para mostrar a cultura deles. Desde 2017 tive contato com eles, mas a possibilidade de ser um bolsista Fulbright sempre me parecia algo bem distante. Venho de família pobre, minha avó era babá e minha mãe é empregada doméstica, a educação sempre foi a esperança de conseguir um futuro “melhor””, desabafa

Venho de família pobre, minha avó era babá e minha mãe é empregada doméstica, a educação sempre foi a esperança de conseguir um futuro “melhor”

Uma nova perspectiva veio em julho de 2022, quando soube da seleção para novos bolsistas FLTAs (professor assistente de língua estrangeira). Dessa vez, juntou os sonhos e temperou com o espírito aventureiro para tentar a receita de um exemplo inspirador para a sua comunidade. Apesar do medo de mais uma porta se fechando, se viu em meio à redações do teste, pedidos de cartas de recomendação e mais provas. A vida seguiu. “Em outubro chegou o email dizendo que a minha candidatura tinha sido aprovada para a fase de entrevistas e em novembro que tinha aprovado na etapa nacional. Só para concluir essa linha do tempo, em março recebi a aprovação final, em maio (de 2023), decidiram que iria para a Universidade da Georgia. Lá vou auxiliar um professor da casa no ensino da língua portuguesa para o pessoal da pós-graduação e organizar eventos para promover a cultura brasileira!”, explica.

Um recorte de cor

Enquanto faz as malas e se despede dos amigos de Teresina para uma jornada de nove meses nos EUA, Mateus observa sua comunidade e percebe que é uma exceção, seja por sua condição social ou pela sua cor. Isso porque de acordo com o dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) Educação, do IBGE, a proporção de estudantes negros matriculados em universidades brasileiras diminuiu de 50,3% em 2022 para 47,8% em 2023, seguindo uma queda gradual desde 2016.

Para Mateus, mais do que a dificuldade no acesso à educação, o racismo também compõe uma estrutura que massacra as periferias. “Nunca sofri aquele racismo explícito, brutalmente violento e escancarado, mas é quase impossível não perceber a violência racial impregnada nos diversos níveis da nossa sociedade. Não ser levado a sério, não ser ouvido em determinadas situações, ou nem mesmo participar de certas conversas mostra que ainda temos muito o que melhorar”, lamenta.

Turma de novos bolsistas da Fulbright

Os dados dessa estatística do PNAD podem ser sentidos na imagem dos novos aventureiros, com o número pequeno de pessoas negras no grupo de estudantes, o que reflete uma dificuldade de acesso a esse tipo de programa, mesmo com ele buscando a diversidade em seus candidatos. “A parte chata disso tudo é que a informação da bolsa ainda está muito restrita aos ambientes acadêmicos, e isso reflete diretamente nos candidatos que estão se inscrevendo. Estar em uma universidade hoje em dia é uma realidade maior para quem é racializado, mas falar uma língua estrangeira não é a realidade de muitas dessas pessoas. Então, mesmo que saibam da bolsa, a barreira linguística pode acabar podando suas experiências e oportunidades”, finaliza. 

Fulbright

O Programa de Intercâmbio Educacional e Cultural do governo dos Estados Unidos, conhecido em todo o mundo como Programa Fulbright, foi estabelecido em 1946, por lei de autoria do Senador J. William Fulbright. Tem como principal objetivo ampliar o entendimento entre a sociedade norte-americana e a de outros países. Com o passar do tempo, vem permitindo uma real integração cultural e educacional entre as nações.

No Brasil, o programa teve início em 1957, quando foi instituída a Comissão Fulbright. É dirigida por um conselho diretor, formado por seis brasileiros e seis cidadãos norte-americanos residentes no Brasil.

O Programa Fulbright oferece bolsas de estudos para estudantes de pós-graduação, professores e pesquisadores. Nesses mais de 50 anos no Brasil, beneficiou 3,5 mil brasileiros e 2,7 mil norte-americanos que puderam realizar o sonho de estudar no exterior, conhecer uma nova cultura e estreitar os laços de amizade entre os dois países. No mundo, o programa já concedeu mais de 370 mil bolsas de estudo, pesquisa e docência a cidadãos norte-americanos e de outros 150 países.

domingo, 5 de maio de 2024

Diego Iglesias

Jornalista, mestre em comunicação pela Universidade Federal do Piauí.

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