sábado, 18 de maio de 2024

“Bebeu água? Não! Tá com sede?”

A morte da fã no show de Taylor Swift acendeu o debate sobre liberação de entrada com água em shows, principalmente em Teresina, onde produtoras temem por questões de segurança

28 de novembro de 2023

O hit que era sucesso nas festas e shows dos anos 90, hoje poderia ser atualizado para um outro debate que tem se tornado presente (e necessário) diante do crescimento dos grandes festivais e eventos de músicas na atualidade: a distribuição de água de forma gratuita. Com a morte de uma fã no show da cantora Taylor Swift no último dia 18 devido problemas relacionados ao calor, o país se viu obrigado a discutir a necessidade de liberação de água potável gratuita nos eventos, inclusive com uma portaria do Ministério da Justiça permitindo a entrada de garrafas de água para uso pessoal. No entanto, antes da tragédia, a polêmica já havia sido acessa em Teresina devido a ausência de bebedouros nos festivais diante da grande onda de calor que tem assustado até os piauienses. O debate tem criado um impasse entre produtoras e a justiça, pois de um lado se alega questões de segurança, com uma pitada de interesses comerciais, enquanto do outro a garantia de uma necessidade básica abraçada pelo Código de Defesa do Consumidor.

Manoel Vieira lembra da adolescência em shows de Teresina com um hábito econômico para evitar a desidratação. Com pouco dinheiro, que mal dava pra pagar a entrada, ele e os amigos recorriam à torneira do banheiro das casas de eventos para hidratação. As vezes conseguiam uma pedra de gelo para amenizar, mas tinham consciência que não era das ações mais higiênicas. Isso, segundo ele, era porque nunca tinha um bebedouro disponível ou água a um preço mais acessível. Era uma ação emergencial. “Depois de um tempo, mais e mais pessoas começaram a pedir gelo, os vendedores começaram a perceber por conta da redução na venda de água. Então, resolvemos inventar que o gelo era pra amenizar uma dor no braço ou na cabeça por conta dos movimentos frenéticos que fazíamos nos shows. Tudo isso como um ato de resistência, de querer fazer parte daquilo”, destaca.

Hoje, adulto, continua lamentando que nas festas ainda exista esse problema, ainda com agravantes: a temperatura está mais alta e a água é mais cara. Assim como todo o país, ele recebeu aflito a notícia da morte da jovem Ana Clara Benvindes, de 23 anos, que passou mal durante um show da cantora Taylor Swift, no Estádio Olímpico Nilton Santos, o Engenhão, no Rio de Janeiro. A causa da morte ainda não foi totalmente esclarecida, mas a suspeita é de que a tenha sido ocasionada pela forte onda de calor que atingiu a capital fluminense, com sensação térmica próxima aos 60ºC. Isso poderia ter sido evitado se ela estivesse bem hidratada no evento, que não disponibilizou água potável gratuita para o público. “A precariedade na organização de grandes eventos de música faz parte de um descaso estrutural no Brasil. O que isso quer dizer? Existe uma questão financeira relacionada ao capitalismo, que prioriza o lucro, mas não se compromete com a qualidade da contratação e prestação de serviços, mesmo com a cobrança de altos valores dos ingressos”, lamenta Manoel.

A tragédia fez com que o tema fosse discutido em todo o país. Um dia após o ocorrido no Rio de Janeiro, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, emitiu uma portaria para permitir a entrada de garrafas de água para uso pessoal em shows no país. Nas redes sociais, ele manifestou preocupação com o ocorrido: “A partir de hoje, por determinação da Secretaria do Consumidor do Ministério da Justiça, será permitida a entrada de garrafas de água de uso pessoal, em material adequado, em espetáculos. E as empresas produtoras de espetáculos com alta exposição ao calor deverão disponibilizar água potável gratuita em ‘ilhas de hidratação’ de fácil acesso”, escreveu o ministro.

Em Teresina, o problema enfrentado por Manoel no início dos anos 2000 persiste até hoje, mas passou a ser discutido com intensidade antes da morte da jovem, com pessoas reclamando da ausência de água potável gratuita em dois grandes festivais realizados em Teresina, que vive uma das temporadas de maior calor. Nas redes sociais, muitos pediam a instalação de “ilhas de hidratação” ou a distribuição de água gratuita. Felizmente, não houveram tragédias em terras mafrenses, mas a pauta chegou na assembleia legislativa com um projeto do deputado Henrique Pires, que obriga a Produtoras de Eventos e Similares a fornecerem água potável filtrada, gratuitamente, bem como a permitirem acesso gratuito de garrafas de uso pessoal, contendo água para consumo em show e festivais.

O deputado Henrique Pires alega que água é um direito à saúde e não pode ser proibida. Foto: Ascom/Alepi

Para o deputado, é lamentável que se negue água em shows, o que é uma necessidade e direito à saúde. “É importante se tenha, eu estou tratando aí de direito à saúde, direito à vida, utilizando aí também o direito do consumidor, água no banheiro para fazer certas necessidades que é gratuito. E o que custa ter água lá gratuita para a população [beber]?”, destaca Henrique.

Pires explica que o projeto, lido no último dia 23, irá para votação da Comissão de Construção de Justiça e, logo depois para as comissões temáticas, Comissão de Construção de Justiça, Comissão do Direito do Consumidor e depois para o Plenário, o que ele acredita que será aprovado e sancionado pelo governador.

A fiscalização, segundo o projeto, será como se fiscaliza leis, através do Ministério Público Estadual, Ministério Público Federal, bem como a população com a denúncia. “A coisa mais fácil do mundo é, através das redes sociais, você mostrar que está acontecendo um crime para que se tome de providência”, esclarece o deputado.

 

Questão de segurança

Apesar de ser uma necessidade básica evidente, a entrada de garrafas com água ou alimentos é um problema para as produtoras devido uma questão de segurança. Isso porque elas alegam que isso pode abrir precedentes para que se entrem com garrafas ou outros objetos que podem vir a se tornar cortantes como vidros e metal. As duas maiores produtoras de Teresina procuradas pela reportagem preferiram não se manifestar, mas deixam claro que não são contra a entrada de água potável, algo que deve ser feito seguindo alguns cuidados para evitar que se entre com drogas ou outros itens nas garrafas. Elas afirmam que estão abertas para o debate com as entidades sobre o tema buscando melhoria do conforto e segurança de quem paga [caro] para se divertir.

Para as empresas de segurança que trabalham nas festas, isso demanda ainda mais atenção e uma maior demora para a entrada, pois seria necessária uma fiscalização mais intensa nos itens permitidos.

Após o ocorrido no Rio de Janeiro, alguns dos maiores festivais do país passaram a anunciar as “ilhas de hidratação” como um bônus para os eventos, além de algumas áreas para descanso e ventilação extra.

 

A diversão em venda casada

A advogada Lílian Mendes, especialista em direito do consumidor, alerta para uma prática comum no ramo de entretenimento: a venda casada, que consiste em “atrelar o fornecimento de um produto ou serviço a outro, que usualmente é vendido separado, de forma a compelir o consumidor a aceitá-los em razão de sua necessidade ou vulnerabilidade”.

Advogada lembra que o Código do Consumidor já diz que empresas não podem obrigar o público a comprar água. Foto: Arquivo pessoal

Segundo ela, a proibição de entrada de água ou itens alimentícios nos eventos vai contra a lei. “O Código de Defesa do Consumidor já proibia, no artigo 39, a venda casada, que é justamente o que esses organizadores de eventos estavam fazendo, condicionando, por exemplo, a venda da água. Então você não poderia levar água de casa ou de outro estabelecimento para o local. Isso já era proibido pela lei, mas aí não estava sendo efetivamente cumprido. Aí, por exemplo, em alguns cinemas as pessoas chegavam com sua própria pipoca, com sua água ou refrigerante de outro estabelecimento e tentavam entrar no cinema e não podia. Isso aí era obviamente contrário à lei. Já tinham decisões judiciais nesse sentido, só que depois do falecimento dessa jovem, isso ficou muito mais evidenciado e aí agora os legisladores, o poder público, viu a necessidade de intervir de uma forma mais intensa, né? Mas a venda casada já era proibida”, explica.

Apesar de estar em pauta na Assembleia Legislativa do Piauí, o projeto também está sendo discutido em nível federal, principalmente com relação ao acesso à água potável que deve ser regulamentado e os direitos dos consumidores respeitados, “especialmente no que se refere ao fornecimento, à ingestão de água, que é um item essencial na vida de qualquer ser humano”, acrescenta.

A advogada reconhece ainda que, com a criação de uma lei específica, é importante dosar na cobrança às produtoras devido as questões de segurança, principalmente vidros e objetos que possam se tornar perfurantes. “Então eu acredito que a lei que está agora em trâmite, provavelmente vai regulamentar essa questão também, porque o que eles não podem é proibir a entrada da água, mas podem, por exemplo, por questão de segurança mesmo, proibir a entrada de alguns tipos de materiais. Por exemplo, o vidro, que ele pode ser quebrado, se torna uma arma. Então, havendo uma briga, uma discussão entre as pessoas que estão participando, pode levar até alguém a óbito numa discussão, uma briga, numa agressão física”, finaliza.

sábado, 18 de maio de 2024

Diego Iglesias

Jornalista, mestre em comunicação pela Universidade Federal do Piauí.

0 comentário

Deixe um comentário

Avatar placeholder

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *