domingo, 5 de maio de 2024

Enfim vencemos a luta? A garantia dos direitos políticos femininos e a persistência da sub-representação das mulheres

27 de setembro de 2022
por Redação

“Recusar à mulher a igualdade de direitos em virtude do sexo é negar justiça à metade da população”.
Bertha Lutz

 

Por Barbara Johas*

As vitórias em relação as políticas afirmativas de gênero no campo do poder político são frutos de intensa mobilização dos movimentos feministas em várias frentes. Atualmente no Brasil a discussão tem sido muito centrada na dimensão jurídica das cotas e da engenharia e ajuste do sistema eleitoral. Embora seja fundamental esse debate, muitos dados e pesquisas têm demonstrado a necessidade de um enfoque nos partidos e no modo como são organizados internamente. Se os partidos são responsáveis pela organização do trabalho político, é fundamental analisar e debater o modo como as decisões intrapartidária são produzidas, ou seja, se os partidos têm baixo grau de democraticidade interna, isso produz um impacto direito sobre o poder de atuação políticas das mulheres, uma vez que as decisões são tomadas pelos líderes partidários e tendo em conta que em sua esmagadora maioria esses líderes são homens, qual é o poder efetivo de decisão e atuação políticas dessas mulheres?

De acordo com o ATENEA (Mecanismo para acelerar a participação política das mulheres na América Latina e Caribe) as análises sobre a estrutura interna dos partidos, seus estatutos e forma de composição interna, demonstram que em geral muitos partidos mencionam em seus estatutos algum compromisso com a igualdade de gênero, entretanto, no nível do estabelecimento de compromissos formais com ações de paridade são poucos os partidos que apresentam em nível programático ações efetivas. Embora a grande maioria dos partidos possuam secretárias da mulher, que em tese seriam responsáveis por tratar do tema da participação política das mulheres, a existência formal desses espaços não significa uma atuação efetiva, mesmo com a destinação legal de recursos para essas secretárias. Um exemplo do baixo grau de impacto das secretárias é o fato de que nenhum dos partidos, mesmo aqueles que possuem o princípio da paridade em seus estatutos, garantem que as secretarias possam incidir sobre o processo de definição das candidaturas, que é uma área de grande disputa e que é fortemente marcada pela atuação das lideranças partidárias. Outro importante fato a ser considerado é que em muitos partidos existe quase que uma ausência total, de mulheres nas suas executivas e/ou diretórios nacionais. Os dados abaixo, retirados do relatório ATENEA, produzido pela ONU Mulheres, permite visualizar essa disparidade:

Fonte: ATENEA, 2020. ONU Mulheres

Como é possível notar dos 30 partidos analisados apenas um possui paridade na composição das suas Executivas e o caso do PSOL, o PT possui 45% de percentual de mulheres seguido pelo PSL com 39 % e o PCdoB com 38%, três partidos não possuem nenhuma mulher nas suas executivas são eles: PSD; PSC e PTC. Do total de 30 partidos 19 deles não alcançam 20% de presença de mulheres nas executivas. A ausência das mulheres dentro da estrutura decisória dos partidos é um importante indicador sobre a baixa margem de efetivo exercício de poder política das mulheres, sendo uma importante indicação das causas da permanência de índices baixíssimos de representação politica feminina. Esses dados expressão as relações de forças dentro dos partidos e a importância da presença de mulheres nos lugares. Importante analisar também o grau de controle público sobre os partidos políticos, a baixa democracia interna dos partidos é um entrave a própria democratização do sistema como um todo e para o aprofundamento democrático.

Outro elemento importante é analisar os índices de candidaturas de mulheres nos diferentes cargos e o percentual de mulheres eleitas, de acordo com os dados do ATENEA, nas eleições de 2018 a grande maioria dos partidos cumpriu a cota de 30% de candidaturas, vários fatores podem explicar esse fenômeno, aqui gostaríamos de salientar o recrudescimento das punições do TSE. Vejamos abaixo os dados:

Fonte: ATENEA, 2020. ONU Mulheres

De acordo com os dados alguns partidos obtiveram o percentual acima dos 30 % de candidaturas, os partidos com as maiores porcentagens são: PCdoB com 39%; PSDB com 37% e MBD com 36 %. Entre aqueles que não conseguiram atingir a margem estão: PP com 26%; PMN com 27% e a REDE com 29%. Analisando esses dados poderíamos chegar à conclusão de que houve um avanço significativo da presença de mulheres na disputa política, o que em tese deveria resultar em mais mulheres eleitas, entretanto, os. No comparativo histórico é possível visualizar os baixos níveis de representativa das mulheres.

Fonte: ATENEA, 2020. ONU Mulheres

Analisando esses dados, a questão que surge é porque as mulheres não conseguem alcançar o “sucesso” político? Porque é tão difícil ampliar a representação feminina. O primeiro aspecto importante é entender que a sub-representação das mulheres é um fenômeno multidimensional e, como tal, não possui uma única variável explicativa, vamos apontar aqui alguns elementos centrais para entender esse fenômeno, procurando apontar algumas ações em curso que visam enfrentar o problema e por último propor alguns caminhos possíveis. Importante analisar o próprio processo de recrutamento político, ou seja, desde o momento da emergência da ambição por disputar um cargo político, as mulheres encontram obstáculos a sua inserção nesse processo, obstáculos esses diversos que vão desde a nossa própria cultural política até o modo como a engenharia partidária opera.

Na dimensão da escolha pela vida política, as mulheres encontram barreiras relacionadas por exemplo à reprodução de papéis sociais que “dizem” para essas mulheres que seu lugar social é o âmbito do espaço privado e que suas obrigações primeiras estão relacionadas ao cuidado (Biroli, 2018). As transformações sociais que supostamente “libertaram” as mulheres do mundo doméstico, deixaram intactas as estruturas de fundamentam a divisão sexual do trabalho, ou seja, o trabalho reprodutivo, aquele que é considerado enquanto um trabalho que não gera valor e que compõem a dimensão do cuidado foi, e continua, sendo compreendido como algo “essencialmente” feminino, uma sobrecarga de recai sobre todas as mulheres, inclusive aquelas que ambicionam a careira política, aqui cabe ainda mais uma observação, determinadas profissões, como é o caso da atividade política, requerem longas jornadas e horários flexíveis o que têm impacto direto sobre aqueles(as) que encontram-se responsáveis pelo cuidado com os outros, existem várias monografias e dissertações em que mulheres que exerceram cargos políticos relatam a dupla e/ou tripla jornada de trabalho e a exaustão física e mental que essa situação gera (Marlise, 2009, 2010).

Quanto essas mulheres “ultrapassam” esses primeiros obstáculos e se tornam “elegíveis” no interior do sistema político, elas encontram outros desafios, agora relacionados à própria estrutura e engenharia partidária. Essa é uma estrutura formada e definida por homens, ou seja, as lideranças partidárias, aqueles que “definem” as candidaturas, são majoritariamente homens.

Quando pensamos o eleitorado brasileiro, que é bastante diverso é preciso levar em conta que, enquanto a legitimidade da atuação política partidária dos homens é algo dado para o eleitorado em geral o mesmo não ocorre com as mulheres, ou seja, para as mulheres é preciso construir com muito suor o reconhecimento social da sua atuação política como algo legítimo. Em resumo há na cultura política brasileira todo um universo de sentidos, da produção de um imaginário político, que não compreende a atuação política das mulheres como naturalmente legítimo.

Ainda no campo dos obstáculos que as mulheres enfrentam ao optarem pela vida política, está o fato de que quando algumas mulheres conseguem ultrapassar os diversos impedimento e chegar a representação política de fato, outros tantos “muros” se apresentam a elas. Em especial é importante entender que a pequena porcentagem de mulheres nesses espaços diminui drasticamente seu potencial de agenciamento, e o seu impacto no trabalho legislativo e na proposição e promoção de políticas públicas é muito residual. Todos esses obstáculos tornam possível entender por que muitas mulheres “escolhem” não pagar os custos altíssimos de adentrar esse processo, o que explica a baixa procura por candidaturas, e para compreender as formas como as mulheres atuam politicamente dentro dessas esferas.

Outro elemento bastante comum às mulheres que atuam no sistema político, e a existência da Violência Política contra mulheres ( VPCM), termo ainda pouco conhecido, mas fortemente vivenciado por muitas mulheres  no exercício de suas atividades políticas. A professora Marlise Matos da UFMG, têm desenvolvido pesquisas sobre a VPCM, em entrevistas disponíveis na internet, a pesquisadora têm reforçado a importância do processo de nomear o fenômeno porque o retira da invisibilidade, recentemente um caso de VPCM foi a público no Brasil, o caso da deputada estadual Isa Penna que foi assediada, importunação sexual, em sessão deliberativa no plenário da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.

A VPM é algo comum da vida das mulheres que disputam a vida política, ou seja, não é algo novo, o que é novo é um espaço acadêmico e epistemológico de reflexão sobre esse fenômeno. Em linhas gerais podemos compreender a violência como uma expressão de processos de esgarçamento do tecido democrático, o que vêm ocorrendo no Brasil pela escalada da violência política em diferentes meios e direcionada para diferentes grupos, vejamos os casos de ameaça de morte de vereadoras negras e transexuais. Por isso é importante nomear esse fenômeno, é importante tanto para a própria democracia brasileira quanto para as mulheres que são vítimas desses processos de violência. Importa ainda salientar que as expressões da violência política contra as mulheres são muitas e vão desde piadas sexistas, cerceamento de falas, assédio moral, até violências físicas e sexuais.

Um fator que também merece destaque, quando analisamos a ausência de representação política equitativa, é a baixa presença de mulheres no poder executivo e na administração pública, ou seja, quanto maior o cargo e maior o poder de decisão sobre a vida pública e os contornos políticos menor é a presença de mulheres. No momento em que estamos finalizando esse artigo o atual governo federal possui apenas três mulheres a frente de ministérios de um total de 23 ministérios, um percentual de 9,1%. Todos os ministérios contam com secretarias executivas, dessas apenas duas são ocupadas por mulheres. De acordo com o relatório ATENEA os principais fatores explicativos para a ocupação desses cargos são as flutuações políticas, as pressões e negociações partidárias, o que reproduz a lógica interna dos partidos de ampla maioria masculina (ATENEA, 2020, p. 29).

Por fim é fundamental agregar ao debate sobre os obstáculos às candidaturas e o acesso efetivo das mulheres a representação política, a questão dos recortes raciais e se sexualidade, ou seja, é importante estar atento a quais mulheres estamos nos referindo quando apontamos por exemplo que houve um ligeiro aumento da representação das mulheres nas eleições municipais de 2020. Quem são essas mulheres? Qual sua cor? Qual sua orientação sexual. De acordo com os dados do TSE a representação de mulheres nas eleições municipais desse ano, passou de 14 % para 16 %, agora olhando de forma mais detalhada para o perfil racial das mulheres, encontramos um ligeiro aumento. No percentual de mulheres brancas eleitas passou-se de 8,4 para 9,5; já com relação as mulheres pardas eleitas o percentual foi de 4,4% em 2016 para 5,4% em 2020; com relação as mulheres negras eleitas a alteração foram de 0,6% para 0,9%, ou seja, em 2020 não chegamos nem a 1% de representação de mulheres negras nas câmaras municipais do Brasil.

Quando voltamos nosso olhar para outros dados, encontramos a informação de que 13% das câmaras municipais não tem nenhuma pessoa negra representada, se o recorte foi interseccional e agregar a questão de raça a dimensão de gênero os números são ainda mais alarmantes, 40 % das câmaras municipais não tem nenhuma mulher negra eleita.

Esses dados iluminam o fenômeno da sub-representação de pessoas negras e pardas na política institucional brasileira e, mais grave ainda, quando ampliamos o olhar, para a dimensão interseccional do entrecruzamento entre raça e gênero, salta aos olhos a existência de uma duplo impedimento das mulheres negras, ou seja, se as mulheres tem baixa representatividade política, as mulheres negras são ainda mais sub-representação, ainda nesse terreno é importante salientar, devido a sua própria composição, as eleições municipais são mais abertas a diferentes perfis de candidaturas, ou seja, elas são mais permeáveis. Por sua vez quando analisamos as eleições de âmbito nacional, é possível perceber que esses processos têm um grau de restrição ao perfil de candidaturas de mulheres, pessoas negras, indígenas, LGBTQIA+ é bem maior (Ramos, 2019)

Os dados aqui apresentados, mesmos que poucos, corroboram o argumento de que é preciso adotar um olhar interseccional na avaliação da política de cotas e dos mecanismos a ela associado. Como é o caso da destinação do financiamento público de campanha nas eleições municipais de 2020 que foi a primeira eleição sob o entendimento do TSE de que os recursos públicos devem ser distribuídos por gênero e raça, dados preliminares do TSE já apontam que o volume de recursos destinado às candidaturas de mulheres negras, por exemplo, não foi equivalente a proporção que elas ocupam nas listas partidárias, nesse sentido o aspecto racial traz elementos mais profundos para compreender as desigualdades no campo do exercício do poder político e da própria qualidade do regime democrático brasileiro.

*Professora de Ciência Politica e doutoranda em Políticas Públicas na Universidade Federal do Piauí (UFPI). Mestre em Ciências Sociais, com área de concentração em Ciência Política, pela Universidade Estadual de Londrina.

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