sexta-feira, 10 de maio de 2024

Longe de tudo que me reduz

"Entender um episódio racista nunca é de uma hora para outra, não é? Porque nunca é aquele momento ali, é a sua vida inteira"

05 de setembro de 2022

Edição Luana Sena

depoimento de Katya D’Angelles à repórter Vitória Pilar

“Teresina não foi o lugar onde eu nasci, mas meus pais são piauienses, de Uruçuí, Sul do Piauí. Acabei nascendo na Bahia, meu pai fugiu cedo da falta de oportunidades. Eu queria estudar e sempre tive bem certa do que eu queria fazer. Não lembro alguma vez ter pensando em exercer outra profissão. Quando eu era criança, dizia a todos que seria jornalista. Eu queria escrever. Ouvi muitas e muitas vezes que ser jornalista não era profissão para filho de gente pobre. 

Chegou a época do vestibular e eu tinha duas opções: ou ia para Belém, ou ia para Teresina. Tentei o vestibular de Jornalismo da UFPI (Universidade Federal do Piauí),duas vezes, a primeira não deu. Quando terminei o ensino médio, no final dos anos 1990, meu pai estava desempregado. Trabalhador da construção civil, país parado. Sem chances de tirar do pouco que se conseguia – e era bem pouco – para bancar estudos em outra cidade. Durante dois anos dei aulas particulares, juntei uma grana e cheguei em Teresina com o suficiente para pagar cinco meses de preparatório para o vestibular.

Na capital piauiense eu tinha um suporte: tios que já faziam faculdade. Nessa época, há mais de 20 anos, foram muitas dificuldades. No bairro Tancredo Neves, zona Sul de Teresina, o apartamento minúsculo. Dividíamos, os quatro estudantes, um mesmo quarto. Eu a única mulher. Durante quatro anos de faculdade dormi ali. Eram duas beliches e uma cômoda, mais a mala com tudo o que eu tinha, sempre embaixo da cama.

Do tempo de UFPI (Universidade Federal do Piauí), tenho muitas histórias. Uma vez fui assaltada, o ladrão ia levar todos os vales do mês. Pedi para ele deixar pelo menos um para eu voltar para casa. Sustentava minha vida de estudante como bolsista da biblioteca – era o que pagava o transporte, a xerox – meus livros comprei mesmo somente após o primeiro emprego – as refeições fazia no R.U (Restaurante Universitário). No apartamento do Tancredo, dividíamos as contas de água, energia e mercado, mas acho que ainda hoje estou em débito com aquele caderninho de despesas.

Quando cheguei no curso, gostava de contar histórias. Mas sempre gostei de ler tudo: da política à economia. Na reportagem, fiz de tudo, Cidade, Municípios, um pouco de Cultura. Era bem diferente de hoje, onde tudo é mais simples e rápido com o celular e a internet para todos. Somente depois que fui para a Política. Minha formação foi no impresso, o Jornal Diário do Povo foi a minha primeira casa. Sempre fui uma pessoa mais voltada a escrever. Até hoje não gosto de exposição. Estar na televisão é um desafio, mas desde o início sempre compareci em programas como comentarista convidada – apesar de sempre estar mais nos bastidores. Trabalhar escrevendo é uma situação das pessoas conhecerem o meu nome, mas não o meu rosto.

Nas redações, eu convivi com grandes jornalistas e alguns deles me marcaram pelos empurrões, incentivo e crença na minha capacidade: Zózimo Tavares, Ednaldo Cicero, Robson Costa, Elisabeth Sá, Deoclécio Dantas e Pires Saboia. São 22 anos de jornalismo. Sempre reconheci que havia pouquíssimas mulheres – principalmente no meio Político. Lembro demais, na roda das pautas, quando eu chegava para fazer pergunta, os políticos não respondiam de pronto, era preciso insistir. Um episódio especial me recordo bem, um colega do Jornal O Dia, o Luís Gustavo, pediu para um deputado me responder. Eu já havia repetido a pergunta duas vezes. Ele virou, instantaneamente, e respondeu. O jornalista percebeu o machismo antes de mim. Só viria a entender sozinha situações assim anos depois. Felizmente, hoje é bem diferente. Hoje eles não têm como nos ignorar – somos maioria. Como pessoa negra, por muito tempo, me vi sendo a única em muitos lugares, e ainda vejo. Acho que a minha geração foi criando um tipo de autoconsciência para identificar que algo está errado. Nunca é de imediato.

Os espaços não são reduzidos, eles têm sido escolhidos e destinados. Não por falta de competência, até porque, uma mulher negra muitas vezes precisa trabalhar mais horas e mais duro. Aprendi muito cedo com meu pai que não existem oportunidades para o trabalhador preto. A gente que faz, corre atrás e até mesmo quando chegamos lá é preciso trabalhar dobrado, mais que qualquer branco que ocupe a mesma função. É preciso provar todo dia que tem competência para ocupar o lugar em que está.

Entender episódios racistas nunca é de uma hora para outra, não é? Porque nunca é aquele momento ali, é a sua vida inteira. E, ao mesmo tempo que ele não representa nada, ele também representa muitas coisas, pois quanto mais conscientes somos, mais doloroso é. Porém, sempre fiz questão de lembrar que sou bem mais que isso. O racismo, seja ele direto, intencional ou não intencional, velado ou estrutural, pode até me reduzir naquele momento, mas não diz quem eu sou. Sou uma mulher negra com uma história. Eu sempre fui, sou e quero continuar sendo maior do que qualquer situação que tente me reduzir”.

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