domingo, 19 de maio de 2024

O patrimônio da lenda do presente

Uma lenda que une o passado e o presente, o Cabeça de Cuia escancara problemas sociais que atravessam o tempo

07 de novembro de 2023

O Piauí é repleto de lendas que contam em retalhos muito da história do seu povo, das suas paisagens e das suas crenças. Uma das mais famosas, sem dúvidas, é a do Cabeça de Cuia, um personagem controverso que paira no imaginário popular, mas que hoje assombra ainda mais por carregar questões atuais que estão em pauta como a violência contra a mulher, machismo, misoginia, além da miséria. A lenda do jovem amaldiçoado, inclusive, se tornou Patrimônio Imaterial em projeto aprovado último dia 03 de novembro e será tema central de um filme que estreará em 2024.

O Cabeça de Cuia, assim como diversas outras lendas do folclore brasileiro como Saci, Boto Cor de Rosa, Curupira, traz um reflexo da miscigenação cultural do povo brasileiro, misturando mitos europeus e indígenas. Ela conta a história de Crispim, um jovem pescador pobre que morava à margem do Rio Parnaíba com a mãe. Em um certo dia, sem sucesso na pesca, ele volta para casa para almoçar e é servido com uma sopa rala de ossos e restos de comida, causando revolta. Em uma discussão com a mãe, ele a mata com um golpe de osso na cabeça, mas antes de morrer ela lhe lança uma maldição: ele se tornaria um monstro com a cabeça semelhante a uma cuia e condenado a vagar pelo Rio Parnaíba. E o encanto só seria desfeito quando devorasse sete Marias virgens.

A lenda se fortificou no imaginário popular como um alerta aos banhistas do rio e tomou muitas versões. O historiador, sociólogo, musicólogo, antropólogo, etnógrafo, folclorista, poeta, cronista, professor, advogado e jornalista brasileiro, Câmara Cascudo, foi um dos mais importantes estudiosos da cultura popular e sua publicação “Geografia dos Mitos Brasileiros” [Editora Global, 2001] traz um resumo de diversos personagens. O autor destaca que “os mitos mais populares no Piauí são os do rio Parnaíba, constantes de Mães-d’Água, homens encantados, filhos de Iaras etc. Todos refletem a convergência entre os mitos europeus e indígenas, estes mais possivelmente trazidos pelos mestiços colonos que surgidos pela herança dos aborígines. Vários mitos locais recordam símiles europeus e identificam a persistência da crendice no setentrião brasileiro”.

A lenda é bastante cultuada em Teresina e traz muito da cultura popular

A origem da lenda do Cabeça de Cuia já atravessa mais de um século contada oralmente por diversas gerações. Na literatura, algumas das primeiras publicações datam de 1884, como a obra “Superstições e Lendas do Norte do Brasil”, de João Alberto Freitas. Nela, o autor relata que “em certos dias da semana, costuma aparecer no rio, à noite, um monstro, a que chamam — Cabeça de Cuia. Este ser desconhecido vai traiçoeiramente se aproximando, pouco a pouco, do indivíduo, e se este porém não se evadir em tempo, será apanhado por ele e submergido incontinenti. É representado por uma figura animada que tem a cabeça à semelhança de uma cuia. Ninguém, porém, ainda conseguiu ver-lhe o corpo”.

Já o historiador e folclorista Alfredo Vale Cabral, em uma publicação da Gazeta Literária de 1884, traz o personagem como “um sujeito que vive dentro do Rio Parnaíba. É alto, magro, de grande cabelo que lhe cai pela testa e quando nada o sacode, faz as suas excursões na enchente do rio e poucas vezes durante a seca. Come de 7 em 7 anos uma moça de nome Maria; às vezes, porém, também devora os meninos quando nadam no rio, e por isso as mães proíbem que seus filhos aí se banhem. Há homens que deixam de se lavar no rio, sobretudo nas enchentes, com medo de serem seguros pelo tal sujeito encantado. Originou-se de um rapaz que não obedecendo a sua mãe, maltratando-a, e abandonando sua família, foi pela mãe amaldiçoado e condenado a viver durante 49 anos nas águas do Parnaíba. Depois que ele comer as 7 Marias tornará ao estado natural, desencantando-se. Conta-se que sua mãe existirá enquanto ele viver nas águas do rio”.

Apesar das suas diversas versões, a lenda guarda algumas particularidades, mas mantem a essência e a moral da história. Câmara Cascudo avalia a lenda como uma tradição branca “de finalidade moral e reunida ao ciclo do castigo”. “O Cabeça de Cuia, disforme e apavorante, é um homem que sofre sua penitência com tempo limitado. O número das sete Marias que deve comer para desencantar-se é traço posterior. As moças de nome Maria levam ideias bíblicas de pureza e santidade física. O “sete” é perpetuamente o número que a cabala de Babilônia julgava misterioso e sinistro”, descreve.

Patrimônio

Personagem secular e uma das figuras mais representativas do folclore popular teresinense, só agora o Cabeça de Cuia recebeu reconhecimento como Patrimônio Cultural Imaterial do Piauí. O Projeto de Lei 193/23, proposto pelo deputado Francisco Limma (PT), foi aprovado no último dia 03 de novembro no plenário da Assembleia Legislativa do Piauí sem votos contrários. Para o deputado, a ideia é preservar “práticas e domínios da vida social que se manifestem em saberes, ofícios e modo de fazer, celebrações, formas de expressões cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas”.

Com o título, a ideia é que o personagem ganhe ainda mais força, elevando, preservando e respeitando a ancestralidade, as práticas sociais e saberes que cercam a lenda, provocando ainda uma valorização geral da cultura piauiense.

Apesar desse empurrão com o projeto de Lei, o Cabeça de Cuia já é um personagem bastante expressivo, principalmente na arte, com souvenirs, painéis e esculturas pela cidade, além de diversas produções literárias, HQs, jogos e audiovisuais. A mais nova é um filme que estará pronto em 2024. E mais do que retratar uma lenda, a produção será voltada para várias questões que permeiam o personagem, temas que estão em discussão na sociedade.

Filme

O filme é um curta de 20 minutos e conta com roteiro e direção do jornalista Rivanildo Feitosa e do cineasta Dalson Carvalho, além de um grande elenco local. Ele hoje está em processo de edição, com previsão de lançamento para o início de 2024. “Não posso falar muito sobre ele ainda.  É curta-metragem, produção independente, que resgata a história (tem mais de uma versão) e o surgimento da lenda centenária através dos próprios moradores do bairro, em especial famílias de pescadores. Tudo isso (primeiro a gente conta a lenda) para depois refletirmos sobre o lado sombrio da lenda do Cabeça de Cuia – o matricídio e o feminicídio, através da dança (performance que denuncia a opressão) e de depoimentos”, adianta Rivanildo.

Para o roteirista, o principal do filme é a reflexão que o personagem traz, principalmente para o corpo feminino, com a representação de vozes de mulheres de destaque como a professora Graça Vilhena e Eugênia Villa (que traz a lenda para o contexto atual das violências domésticas e feminicídio).

Rivanildo explorou depoimentos femininos durante as gravações do curta

“E a ideia é justamente essa, de levar o filme para as escolas para que ele possa ser discutido. Não tem como acabar com uma lenda que está enraizada na própria história e desenvolvimento de Teresina, no contexto em que ele surge do primeiro bairro, uma história de mais de 100 anos e que é repassada pelos próprios moradores e que ganhou a cidade, que ganhou o Estado. Então não tem como simplesmente descartar uma lenda que é o principal postal turístico da cidade, como lá na escultura do Encontro dos Rios”, destaca Rivanildo.

A professora e pesquisadora da UFPI Dulce Silva, ativa e pulsante nas questões sociais, principalmente relativas à mulher, também participou do filme. Ela destaca que a produção é de suma importância, principalmente com a possibilidade de incitar o debate nas escolas e aguçar o senso crítico dos jovens, o público ativo da plataforma que ele será lançado. “Acho extremamente louvável essa iniciativa em fazer esse filme, trazer esse tema, que é muito necessário nesse momento de ser jogado, de ser entregue para a população, na medida em que há uma iniciativa que um pouco já arrefeceu. É a lenda mais importante do Estado e que deveria ser discutida nas escolas. Então, é interessante ver como é que essa lenda ela chega ao conhecimento dessas crianças, do ensino fundamental. Crianças que estão em formação, e que tem que ver como é que elas assimilam essa lenda, se é como homenagem ou não o que deve ser feito”, destaca.

Para a pesquisadora, o filme, assim como a lenda e os mitos contam com um fundo moral bastante forte e controverso, que devem ou não ser reproduzidos, mas que neste caso atravessou o tempo com um tema que ainda hoje machuca, que não deve ser festejada, mas sim um mecanismo para uma percepção aguçada. “Do meu ponto de vista, a lenda trata de dois crimes bastante atuais que hoje na sociedade a gente vem discutindo e batalhando que é o crime de assassinato de mulheres, o feminicídio, e o crime de estupro, por que na verdade se trata dessas duas coisas que atualmente estão muito presentes na vida das mulheres”, destaca Dulce.

Para ela, a história em uma leitura mais profunda traz uma metáfora extremamente violenta, pois “por não encontrar o alimento que estava esperando, ele mata a mãe. E qual foi a punição que ele recebeu? Foi a maldição da mãe de ficar vagando pelo rio, assombrando os pescadores, que só pode ser quebrada quando ele comer sete virgens, que na verdade essa metáfora de comer, de devorar ela é utilizada como uma representação sexual, que seria um abuso contra a mulher. Então é uma lenda que não tem que ser festejada, mas tem que ter essa percepção crítica”, finaliza a pesquisadora.

 

domingo, 19 de maio de 2024

Diego Iglesias

Jornalista, mestre em comunicação pela Universidade Federal do Piauí.

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