sábado, 27 de abril de 2024

O preço da liberdade em gramas

Julgamento do STF, adiado para vistas mais uma vez, pode definir o futuro de pessoas entre a liberdade e um cemitério de gente viva

07 de março de 2024

“Legalize já, legalize já. Uma erva natural não pode te prejudicar”. O trecho de uma canção de Marcelo D2 e Rafael Crespo de 1995 para a banda Planet Hemp ilustram um desejo antigo de alguns brasileiros adeptos ao “chá”, “ganja”, “marijuana”, “beck”, entre outros apelidos para a maconha. A legalização, como aconteceu na Alemanha há pouco tempo, ainda é algo utópico e distante para o Brasil, mas que caminha rumo a uma decisão a passos de formiga e sem muita vontade. Um dos passos, entre os para frente e para trás, foi dado essa semana com mais um capítulo de um julgamento do STF – Superior Tribunal Federal- que pode abrir precedentes para a descriminalização da droga, ou pelo menos definir de vez quem é traficante e quem é usuário, uma interpretação que hoje cabe à polícia, que segundo pesquisas usa o critério de cor para as prisões. Com o placar de 5 a favor e 3 contra liberação do porte de maconha para uso pessoal, a votação que se arrasta desde 2011 foi adiada mais uma vez para novas vistas ao processo.

Longe da ideia de que a votação transformaria o Brasil em um grande “fumódromo” com caixas de som espalhadas tocando reggae e que as famílias seriam destruídas com o novo antro de promiscuidade, como é pregado por uma ala política conservadora de direita, a votação não é a criação de uma Lei ou a modificação da Lei de Drogas de 2006, algo que, inclusive, tem desagradado o legislativo. O julgamento do STF trata apenas da possibilidade de abertura de precedentes legais para futuros julgamentos, nos quais seriam definidos, de acordo com uma determinada quantidade de droga, quem é um traficante e quem é usuário.

Esse julgamento iniciou por causa de 3 gramas de maconha em posse de um homem em um Centro de Detenção Provisória em São Paulo, onde ele dividia uma cela com vários outros em 2009. A droga foi encontrada por dois agentes penais, que compuseram como as únicas testemunhas de acusação, enquanto os companheiros de cela se mantiveram em silêncio, uma regra comum na prisão.

Levado ao Distrito policial, ele foi autuado em flagrante e recebeu um novo processo, agora por crime de porte de droga para uso pessoal, artigo 28 da lei n.11.343 de 2006 e, consequentemente uma nova condenação de prisão pela Justiça de São Paulo, que foi questionada pela Defensoria Pública, alegando, entre outros motivos, que a criminalização do porte individual fere o direito à liberdade, à privacidade e à autolesão, entre outros pontos. Com isso, um recurso contra a condenação subiu de instância para julgamento e foi para o STF em 2011.

Na corte superior da justiça, que tem autoridade para se pronunciar sobre o tema por se tratar de direitos fundamentais previstos na Constituição, o julgamento vem se arrastando desde 2015, quando o debate sobre a descriminalização de drogas no Brasil e no mundo voltou a reascender. O relator do processo, o ministro Gilmar Mendes surpreendeu ao votar pela despenalização do usuário, e teve seu voto seguido por Edson Fachin e Roberto Barroso, mas esbarrou em Teori Zavascki, que pediu vista, mas acabou morrendo em janeiro de 2017, em um acidente aéreo em Paraty). O seu sucessor, o ministro Alexandre de Moraes apresentou seu voto a favor da descriminalização em 2023, seguido pela ministra Rosa Weber antes de se aposentar. O primeiro a votar contra foi o ministro Cristiano Zanin, que alegou que a pauta apresenta problemas jurídicos que podem agravar o combate às drogas. Ele foi pausado novamente para vistas (uma nova revisão) a pedido do ministro André Mendonça.

O ministro Dias Toffoli pediu vistas e o julgamento foi adiado novamente. Foto: Ascom/STF

Retomado nesta semana, o julgamento recebeu apenas dois votos, de André Mendonça e Nunes Marques, que defendem manter como crime a posse de maconha para uso pessoal. Dessa vez, o ministro Dias Toffoli pediu nova vista para o processo e pode ficar com o mesmo por até 90 dias, quando será marcada nova sessão para a votação do próprio Toffoli e dos ministros Luiz Fux e Cármen Lúcia. O placar segue 5 a 3.

A lei e o julgamento

Atualmente, a Lei de Drogas estabelece o tráfico de drogas é crime com punição com pena de 5 a 20 anos de prisão. A mesma Lei considera que é crime adquirir, guardar e transportar entorpecentes para consumo pessoal, mas não com pena de prisão para a conduta, mas punições como sanções administrativas ou civis, que consistem em assistir palestras ou prestação de serviços à comunidade. Porém, como não há uma quantidade que defina quem é traficante e quem é usuário, muitos acabam sendo jogados no mesmo lugar comum.

O advogado criminalista Marco Cabral acompanha o julgamento desde 2011 e explica que resultado não vai legalizar a maconha ou qualquer outra droga, nem regular o uso ou comércio, mas que abre espaço para despenalização. Isso porque, como a ação é de repercussão geral, o entendimento definido pelo STF, a autoridade máxima, deverá balizar a análise de processos ligados à mesma questão.

Para o advogado, o julgamento tem um peso muito grande para as futuras decisões de magistrados, essencialmente no que é relacionado a prisão de populações periféricas, principalmente negras, que geram a superpopulação nos presídios por penas pequenas, condenados por denúncias vagas oriundas das autoridades policiais. “[Ser traficante] fica a critério do delegado que faz o flagrante, fica a critério do juiz que aceita ou que recebe a denúncia. Isso hoje é muito vago, por isso que é importante a esse julgamento para colocar os pingos nos ‘is’, para não encher mais presídio de pequeno consumidor, e tem muito disso, [de usuário] que é confundido com traficante por ser preto ou da periferia”, argumenta.

Dados do último relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) indicam que majoritariamente o sistema carcerário é formado por pessoas negras e periféricas. Segundo o levantamento, divulgado em 2023, entre 2005 e 2022, apesar do crescimento de 215% da população branca encarcerada, a parcela de brancos caiu de 39,8% para 30,4% entre os presos. Já entre os negros, os números subiram 381,3%, no mesmo período.

Já os dados do Sistema Nacional de Informações Penais apontam que, em 2023, o país tinha uma população carcerária de 644.305 pessoas, sendo que 193.542 são de pessoas acusadas de tráfico de drogas, o que representa cerca de 30% dos encarcerados, um número considerado grande tendo em vista as dezenas de outros crimes tipificados pelo código penal, como roubo qualificado, que levou 100.274 e representa 16% das prisões.

Portanto, dentro dessa quantidade de pessoas encarceradas por tráfico, muitas perderam a liberdade apenas por uma questão subjetiva, tendo em vista que a análise da polícia é quem define quem é traficante ou usuário.

Os números trazem uma realidade assustadora, mas que é bem pior para quem está do outro lado do muro, cercado de grades e humilhações. Enquanto se discute a descriminalização, milhares de jovens seguem presos, muitos taxados de traficantes apenas por serem usuários e a polícia seguir uma política de “limpeza social e racial”.

Cemitério de gente viva

Quem passou pelo sistema prisional consegue ver nitidamente isso. O ex-presidiário R. M. conta que muitas pessoas que conheceu no sistema prisional foram acusadas de tráfico e nem eram traficantes de verdade, mas apenas usuários que tiveram essa tipificação inclusa no processo por cisma da polícia ou para se livrarem de um problema maior. “É essa situação que o próprio Estado cria o sistema, de torturar, de reprimir pessoas, às vezes, até inocente, que foi pego com um baseado. Às vezes ela estava no lugar errado, na hora errada e a polícia detém, leva para passar por tudo aquilo. Se ela for preta, pobre, não tiver condições financeiras, ela vai depender de um assistente social, arranjar um advogado pra ela, isso demora. Enquanto isso a pessoa vê o culpado, o dono da droga, ou de qualquer outra coisa, saindo porque é branco e teve condição de pagar um advogado e ela ficando. É frustrante isso” lamenta.

Segundo R. o mais absurdo nisso é que acabam colocando pessoas inocentes com criminosos juntos numa escola do crime, ou num corredor da morte. “O próprio agente penal te empurra pro crime. Quando você chega, ele já te pergunta de qual facção você é, pra qual pavilhão você quer ir. Se disser que não é de facção, ele te induz que vai jogar em uma facção inimiga só pra saber se você é ou não daquela facção. Ou seja, ele está declarando a morte do preso inocente. Então eles terminam induzindo você a se filiar, a aceitar um grupo familiar dentro da unidade prisional. E a partir dali, você está a seguir o seu instinto de sobrevivência, né? E às vezes, pra sobreviver, você tem que se deixar apadrinhar por alguma organização criminosa pra não ser morto, porque os agentes vão te colocar em situação de constrangimento contra a massa carcerária e você vai chegar no momento que vai ter que dizer de que lado você está. E poucas pessoas conseguem ter sabedoria para permanecer em cima do muro”, explica.

R. é um homem branco e era estudante universitário quando foi preso acusado de tráfico. Ele enxerga seus privilégios nisso, apesar de achar injusta sua prisão devido o inferno que passou com torturas e humilhações, mas reconhece que é bem pior para pessoas pretas, o que evidencia racismo nas prisões por tráfico, algo que comprovou na diferença do tratamento que recebeu na prisão por parte dos agentes em comparação com outras pessoas negras acusadas do mesmo crime. “Lá eles [agentes] me tratavam com um pouco mais de respeito, mas tinha humilhação. Eu era minoria porque era branco e [os presos] me chamavam de playboy, de professor, não sei o que e isso dificultou um pouco a fazer amizades. Mas com o tempo a gente vai ganhando as pessoas”, lembra.

Para R., um outro problema nessas prisões e a falta de uma regulamentação mais precisa diferenciando traficante de usuário é que a polícia e a própria mídia acabam criando um monstro onde não existe. “A pessoa é exposta como um grande traficante, como acontece na maioria das vezes, só porque o policial quer envaidecer a sua missão, o jornal quer envaidecer a sua matéria e não tem nada legal naquele dia para mostrar. Então, eles fazem de um pequeno pobre usuário um grande traficante. E ele é torturado, passa vários anos preso, é perseguido, não tem condição de pagar um advogado e aquele simples baseado acaba com tudo. Um cara que poderia ser uma mente brilhante, um futuro para a sociedade, simplesmente por ele ser pego com um baseado, todas as consequências que ele sofreu no sistema prisional podem transformar nele em um cara que vai cometer um crime maior, porque ele estava num cemitério de gente viva. É mais ou menos isso.”, frisa.

R. destaca ainda que existe uma grande relação dessas prisões com o genocídio de pessoas pretas e periféricas, sendo urgente a necessidade de se discutir mais amplamente a guerra contra as drogas. “A desculpa é que é uma guerra contra as drogas. Matou por que? Era traficante, era traficante! Com a descriminalização vai acabar essa desculpa. Eles vão ter que justificar por que esse tanto de gente está sendo morta, está sendo executada. E eu acredito que seja assim. Seria uma grande arma contra essa política que dizima o povo preto e pobre. É uma política elitista que tem como propósito matar a população pobre, preta, masculina, diga-se de passagem. De certo modo é uma maneira de mostrar a força do Estado, é só isso que é feito, é uma ditadura maquiada, é assim que eu chamo a guerra contra as drogas, uma ditadura maquiada e utilizada como forma de esconder a pobreza do país, mata o pobre que aí ele deixa de existir, é mais fácil assim, e a gente fica rico para fazer isso, acho que é isso que eles falam na reunião com eles sozinhos”, finaliza.

A história da maconha na pele

Para entender um pouco mais sobre preconceito e como tudo isso tem uma ligação forte com o racismo, é importante conhecer um pouco sobre a história da erva.

Por mais estranho que possa parecer, o Brasil foi descoberto com a ajuda da maconha. Mas não, não era o senhor Pedro Álvares no topo do navio sentindo a brisa e dando o grito de “terra a vista” com uma visão lenta e um sorriso no canto da boca. Na verdade, a planta ajudou a descobrir boa parte das terras nesse período, presente nos navios. Isso porque as velas e o cordame das embarcações eram feitos de fibra de cânhamo, como também é chamada a Cannabis sativa L.

O primeiro uso da planta, nativa da Ásia Central e Meridional, foi para a confecção de tecido. Há pelo menos 6 mil anos, o cânhamo, uma das espécies da cannabis e com baixo teor psicoativo, era cultivada e suas sementes oleosas eram usadas para fazer roupas e cordas de fibras, com estudos hoje indicando que sua resistência à tração é três vezes maior do que a do algodão. O uso recreativo, ou como incremento ritualístico, se deu cerca de três mil anos depois na China e se espalhou pelo mundo. O registro mais antigo foi encontrado num cemitério chines, onde haviam 10 vasos de madeira, sendo que, em 9, tinham plantas de cannabis queimadas e que tinham um teor elevado de THC, fitocanabinoide que causa efeitos psicotrópicos. No entanto, não se sabe se foram usadas para fins de entretenimento ou para rituais fúnebres.

O canhamo ainda hoje alimenta a indústria de tecidos em diversos países que a produção é permitida

A espécie de cannabis de uso recreativo, na verdade só chegou ao Brasil cerca de 50 anos após o descobrimento nas embarcações que traziam os escravos. Em artigo do médico e pesquisador Elisaldo Araújo Carlini, uma das maiores referências do país no estudo do uso medicinal da planta, ele aponta documentos que indicam que as sementes eram trazidas por negros escravos em bonecas de pano, amarradas nas pontas das tangas.

O uso da planta pelos escravos na lavoura brasileira era livre, uma forma de alívio das humilhações pela escravidão e conexão com a terra natal, onde era chamada, entre outros nomes de “fumo de Angola”. Com isso, passou ainda a ser disseminado também entre os indígenas que passaram a cultivá-la para uso próprio. No entanto, o consumo se ateve apenas às classes menos favorecidas, distantes das elites brancas. Por volta do século XVIII, a coroa portuguesa tinha conhecimento da planta e a via com bons olhos de bom explorador, inclusive manifestou interesse no cultivo, mas para a produção têxtil. A própria rainha Carlota Joaquina (esposa do Rei D. João VI) tinha o hábito de tomar um chá de maconha para alívio de cólicas.

No século XIX, após a divulgação dos trabalhos do Prof. Jean Jacques Moreau, da Faculdade de Medicina da Tour, na França, que tratavam sobre intoxicação por maconha. Isso porque no estudo ele associava o uso da substância à loucura, o que, por outro lado resultou em mais estudos tendo como a máxima o ditado que diz que “o que diferencia o veneno do remédio é a dose”. E assim surgiram também medicamentos como as “cigarrilhas Grimault”, indicadas – até para crianças- para tratamento de bronquite, asma, insônia e outras condições. Em um dos trechos da pesquisa de Elisaldo, ele traz um formulário médico com a descrição: “Debaixo de sua influência o espírito tem uma tendência às idéias risonhas. Um dos seus efeitos mais ordinários é provocar gargalhadas (…) Mas os indivíduos que fazem uso contínuo do haschich vivem num estado de marasmo e imbecilidade” (Chernoviz, 1888).

Imagem do anúncio de cigarro de maconha que prometia aliviar vários problemas de saúde

Enquanto uma janela para o uso medicinal da planta se abriu com os estudos de Moreau, as portas da sociedade começaram a se fechar para o uso recreativo, iniciando um cenário de repressão. No século XX, com a realização da II Conferência Internacional do Ópio, em 1924, em Genebra, que discutia apenas os efeitos do ópio e da coca, a maconha acabou sendo incluída na pauta e acabou embarcando no mesmo avião da política proibicionista.

Um dos primeiros lugares do mundo a proibir a maconha, por incrível que pareça, foi o Rio de Janeiro, que apesar dos surfistas e ala hippie hoje vendida como cartão postal, sempre manteve uma aura conservadora enrustida. Em 1934 foram registradas as primeiras prisões pelo comércio clandestino da erva, o que serviu de exemplo para outros estados, iniciando uma guerra à canabis.

Os Estados Unidos entrou nessa guerra, mas com uma política de controle de populações vulneráveis e capitalista disfarçada de repressão à droga. Isso porque com a Lei Seca que proibia a comercialização de álcool, a maconha que era restrita apenas às minorias mexicanas, acabou sendo difundida nas periferias, principalmente negros e imigrantes, que consistiam na maioria das prisões. E, coincidentemente, a ideia de plantações de maconha que poderiam abastecer o mercado têxtil desagradavam as indústrias petrolíferas fabricantes de fibras sintéticas, além da hegemonia da indústria do tabaco, que também contribuiu com o lobby para a demonização da droga.

Com o passar dos anos, as políticas anti-maconha passaram a perder força e alguns países começaram a rever suas leis. Na década de 70, a Holanda passou a descriminaliza-la e regular a venda e o consumo, restrito a alguns espaços e a uma determinada quantidade. Em 2013, o Uruguai se tornou o primeiro país do mundo a legalizar a produção, distribuição e consumo da cannabis, sendo exemplo para outros países da América Latina que legalizaram o uso terapêutico como o Chile (2015) a Colômbia (2016), e mais recentemente a Argentina e Peru.

Já os Estados Unidos, apesar da lei federal proibir o cultivo e comercialização, o consumo recreativo foi legalizado em 19 estados, o que alimenta hoje uma indústria milionária.

A criminalização da maconha no Brasil só foi revista em 2006, com o artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), que trata sobre o transporte e armazenamento de drogas para uso pessoal e excluiu a prisão, deixando a pena mais branda: advertência sobre os efeitos, serviços comunitários e medida educativa de comparecimento a programa ou curso sobre uso de drogas.

sábado, 27 de abril de 2024

Diego Iglesias

Jornalista, mestre em comunicação pela Universidade Federal do Piauí.

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