Ainda em 2020, poucas semanas depois de decretada a quarentena no Piauí decorrente da pandemia de Covid-19 uma notícia chamou atenção: o Governo do Estado realizou uma encomenda tecnológica bem sucedida para desenvolvimento de respiradores com uma startup piauiense, comandada por um jovem professor universitário. O jovem era Gildário Lima, 36 anos, nascido em Campo Maior.
Agora, em 2021, foi Gildário que me acompanhou até sua cidade – que hoje completa 259 anos – para conhecer o trabalho da irmã Natividade. Uma freira octogenária que dirige, desde 1992, o Lar da Criança no município. Hoje, a casa atende 280 crianças com aula em tempo integral e três refeições por dia.
No caminho para o Lar, Gildário estaciona o carro para me mostrar uma esquina que, anos atrás, era um local utilizado como lixão. Era o percurso que ele fazia para chegar à escola, todos os dias. Ainda garoto, ele passava por ali quando encontrou um livro que mudaria a sua vida: “Tratado da Correção do Intelecto”, de Spinoza, o filósofo dos filósofos. O livro, difícil de entender para uma criança, era uma amostra da vastidão do que havia por descobrir o menino curioso, que gostava de desmontar brinquedos para entender como as coisas funcionavam.
Em 1983, quando Gildário nasceu, a irmã Natividade já dedicava sua vida a ajudar crianças pobres. É o que me contaria no decorrer daquele dia: “A melhor ajuda que você pode dar para uma pessoa é o estudo”. Quando aquela senhorinha de cabelos brancos e olhos arredondados abre a porta para receber o jovem professor, o espaço é preenchido pela força do encontro de gerações que se completam: educação que transformou a vida de Gildário é a mesma que a irmã leva para centenas de crianças.
Os passos apressados e a fala eloquente logo nos fazem duvidar da idade de dona Natividade. O entusiasmo com que ela nos mostra as sanfonas na sala de música e a imaginação que projeta no seu olhar o estúdio de uma rádio escola (que vai ocupar o lugar de um depósito no meio do quintal) são, com certeza, o mesmo entusiasmo e criatividade que movem a cabeça do jovem professor Gildário. Ele fundou a Tron – Ensino de Robótica, hoje presente em 12 estados brasileiros. Ambos não aceitam que a realidade limite suas vidas. Seja lutando por melhores condições de vidas para crianças, seja criando circuitos para um respirador, os dois superam limites para transformar a realidade.
Essas histórias também são cruzadas pela migração: a irmã, que hoje vive em Campo Maior, nasceu em Inhuma, no sul do Piauí. E o professor, que nasceu em Campo Maior, vive em Parnaíba, onde fica a sede da Tron e a Universidade Federal do Delta do Parnaíba, que ele ajudou a criar e onde é professor do curso de Física.
Sentada entre as caixas de sanfonas e de frente para o piano da sala de música, irmã Natividade nos conta que, quando criança, ela entendia que a missão de uma freira era ajudar os pobres e, por isso, a escolha pela profissão da fé foi natural para ela. Mais de 50 anos depois de iniciar a vida na congregação, ela ainda é tomada pelo sentimento de insuficiência – e os olhos marejados nesse momento são testemunhos de que ela queria fazer muito mais: “Se a gente não fizer a nossa parte, vai ficar um vazio”.
As lágrimas que ela consegue segurar durante a conversa passam a querer sair dos olhos de todos nós naquela sala, quando ela revela: “As duas coisas que eu tenho vontade: ver um Brasil sem fome e um Brasil com todos gozando dos direitos que tem na Constituição, direito à educação, direito à saúde, direito à segurança”, revela. “No mínimo a pessoa tem que ter o direito de comer, de não passar fome. O primeiro direito de uma criança é o direito a alimentação”.
Ouvir isso em 2021 – no cenário de uma grave crise humanitária que vive o Brasil e o Piauí – de uma pessoa que dedica toda a sua vida a lutar contra um mal que continua nos assombrando, fez com que eu perdesse a luta para a lágrima que já tentava cair.
A inteligência e a criatividade do jovem professor, que produz tecnologia capaz de salvar vidas, e a luta diária da freira de 82 anos para levar comida e educação para centenas de crianças carentes, naquela tarde se encontram no solo da cidade da batalha. Há quase 200 anos, se cruzaram ali também a honra e o sangue de piauienses, na Batalha do Jenipapo. Naquele momento, tudo passa a ter, para mim, um significado maior que uma luta pela independência do Brasil.
Aquelas pessoas armadas de pedaços de pau, facões e foices, regaram com seu sangue um pedaço do solo piauiense que hoje é marcado pelos passos transformadores de Gildário, pela devoção e doação da irmã Natividade. Eles nos mostram que, desde a batalha, o que nos é exigido é coragem. Coragem para superar os limites que parecem insuperáveis, para transformar a realidade e para criar o futuro que sonhamos para o Piauí.
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2 comentários
Ana Amábile · 8 de agosto de 2021 às 14:33
Campo Maior, berço de grandiosos!
Conceição Rodrigues · 9 de agosto de 2021 às 14:05
O texto escrito demonstra o afeto pela terra natal e o desejo que impulsiona os conterrâneos e conterrâneas por dias melhores para sua gente. Belas histórias que se cruzam na busca de um mesmo ideal que são dias melhores e uma sociedade justa e igualitária.