sábado, 18 de maio de 2024

O veneno sob o laço vermelho

Enquanto os casos de infecção aumentam entre os jovens, é importante acender o debate sobre o preconceito contra quem convive com HIV

07 de dezembro de 2023

O mês que lembra a luta mundial contra a AIDS acendeu um alerta no Piauí para o aumento dos casos de pessoas contraindo o vírus, principalmente os mais jovens. Dados epistemológicos divulgados pela Secretaria de Saúde do Piauí apontam uma onda crescente de casos de pessoas com idade de 20 a 34 anos e, dentre eles, homens. Diante disso, a campanha de dezembro está sendo voltada para esse público com diversas ações educativas para evitar contrair a doença. No entanto, é importante alertar ainda para um outro tema: a sorofobia, uma dor silenciosa de pessoas que convivem com o HIV.

Os dados epidemiológicos do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) levantados pela Sesapi indicam que o Piauí registrou de 3.279 de casos de AIDS em adultos entre 2015 e 2023. Desse total, quase a metade (49%) eram de jovens com idade entre 20 a 34 anos, sendo a maioria (74%) homens. Somente neste ano foram 689 novos casos notificados no Piauí. Já os óbitos por causa da Aids, somente em 2022, somaram 160.

A doença, apesar de não ter cura, pode ser tratada e os sintomas amenizados caso seja feito um acompanhamento precoce. Em muitos casos, a carga viral da doença pode ficar tão baixa de modo que não seja mais transmitida e o paciente siga uma vida normal, mas com alguns cuidados, tendo em vista que a medicação possui alguns efeitos colaterais que variam a cada pessoa.

O tratamento no Brasil é feito de forma gratuita pelo Sistema Único de Saúde desde 1996 e, de acordo com uma pesquisa do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), entidade vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU), 64% dos jovens que vivem com HIV no Brasil aprovam o acolhimento recebido em serviços de saúde, sendo que 35,7% classificaram como razoável ou ruim.

A pesquisa apontou ainda que cerca de 20% dos entrevistados já vivenciaram, no sistema de saúde brasileiro, situações como desrespeito ao desconforto, privacidade, desconforto durante o atendimento ou sentimento de culpa ou vergonha por ser uma pessoa com HIV.

Se os dados indicam que o desrespeito por parte de profissionais que recebem treinamento para lidar com a situação delicada de pessoas que convivem com a doença ainda existe, fora dos espaços de acolhimento, isso pode ser considerado uma violência. E é o que as pessoas convivem diariamente. Mesmo com o bombardeio de informações na internet e diversas campanhas tanto sobre prevenção como sobre a doença, muitos ainda sofrem com a sorofobia, também chamada de serafobia, sidafobia ou estigma sorológico, que corresponde ao preconceito e discriminação contra pessoas que vivem com HIV.

O preconceito existe desde que a doença foi descoberta, principalmente por grande parte das pessoas infectadas serem homossexuais. E era um terror além da síndrome, com rejeição social e profissional. Dentro desse contexto, abrimos até um parêntese para um relato pessoal de quem escreve esse texto, retomando uma memória que leva ao pequeno Diego no ano de 1994, quando visitava os primos, sobrinhos do escritor Caio Fernando Abreu, que faleceu em 1996 por conta da doença e na época estava recluso na casa dos pais, no bairro Menino Deus, em Porto Alegre, numa casa que foi demolida no ano passado.

A imagem que formava na cabeça desse Diego de 10 anos de idade, que corria pela biblioteca onde Caio costumava ficar as tardes, era de que a qualquer momento surgiria um monstro, doente, debilitado, que poderia deixar qualquer pessoa doente também. No entanto, no momento de maior tensão, e até coragem por ficar, surgiu o homem de voz mansa que perguntava sobre o Piauí e sobre o gosto por livros, uma lembrança que, inclusive, foi influência forte para a entrada no universo da escrita através do jornalismo.

O medo dessa situação da infância era, na verdade, apenas uma das vielas escuras e estreitas da desinformação, aliada à homofobia escrachada da época, propagada pelos arredores nos discursos dos adultos.

Hoje esse tipo de medo é amenizado pela informação e a sorofobia é crime previsto pela lei nº 12.984/2014, com reclusão, de 1 a 4 anos, e multa, pelo preconceito contra pessoas que convivem com o HIV.

Entretanto, talvez em uma proporção menor, mas não menos violenta, muitas pessoas ainda sofrem com a tentativa de levar uma vida normal diante dos estigmas. Alguns ainda tentam transformar a dor em força para levar a luz da informação com as cores da arte, como é o caso do arte-educador Ronney Rodrigues, que há seis anos convive com o HIV. “O que me perturba profundamente não é a minha condição sorológica, já que eu sei que atualmente posso ter uma vida saudável e plena. O que realmente me assusta é o preconceito e o julgamento do outro. Infelizmente, os estigmas ainda existem e matam. Talvez essa seja uma das maiores dificuldades de uma pessoa vivendo com HIV”, destaca.

Ronney temia em dar a entrevista diante da possibilidade de exposição e, consequentemente, mais violências, mas percebeu a importância da sua voz como uma arma para o enfrentamento contra a desinformação. “Eu estava ciente de que compartilhar minha condição sorológica poderia me expor a situações de constrangimento, ignorância, medo e preconceito. Mas pretendo seguir adiante, compartilhando minha história, fornecendo informações e oferecendo apoio àqueles que também vivem com HIV. Hoje enxergo a importância da minha voz, pra acabar com esses preconceitos e estigmas dentro da minha família, dentro do meu território e da comunidade LGBTI+. Ainda surgem novos sentimentos, medos e inquietações que estou aprendendo a lidar”, acrescenta.

Ronney diz que a falta de informação gera preconceitos. Foto: Arquivo Pessoal

Para ele, além do tratamento da doença em si, um dos sintomas que as campanhas educativas têm dificuldade de tratar é a solidão. “Perdi muitas pessoas na minha vida, pessoas que convivia se afastaram, eu mesmo fui me afastando e me isolando, por medo da rejeição, dos estigmas e preconceitos. Mesmo com os avanços e estudos sobre o tema, as pessoas ainda carregam preconceitos. Muitos desses preconceitos existem por falta de informação. Aí com o tempo fui aprendendo mais sobre os processos da solidão que me atravessa”, lamenta.

Apesar de aprovar o acolhimento por parte do SUS, Ronney alerta ainda para a falta de informação e formação dos profissionais de saúde, juntamente com a falha na implementação de políticas públicas eficazes para pessoas vivendo com HIV no Piauí. “Mesmo com os avanços, ainda há um medo generalizado em fazer testes rápidos, e é necessário que deixemos de ser alarmistas e passemos a informar e acolher as pessoas nessas condições de forma humana e eficaz”, finaliza.

Assim como aconteceu na época de Caio Fernando Abreu, Cazuza e outros que foram levados pela doença, e hoje acontece ainda contra pessoas LGBTQIA+, o preconceito também modernizou suas ferramentas e tecnologia contra pessoas que convivem com o HIV, uma doença que se mostra também incurável.

sábado, 18 de maio de 2024

Diego Iglesias

Jornalista, mestre em comunicação pela Universidade Federal do Piauí.

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