segunda-feira, 20 de maio de 2024

Situação de presos no Piauí se agrava na pandemia

Relatórios e monitoramentos apontam denúncias de maus tratos e torturas dentro do sistema prisional

08 de junho de 2021

No Piauí, a violação de direitos de pessoas privadas de liberdade pode estar se agravando durante o período da pandemia da Covid-19. Denúncias de maus tratos ganharam destaque recentemente com a divulgação do Relatório Técnico do Ministério da Saúde, que iniciou uma investigação na Cadeia Pública de Altos (CPA) após a notificação do surto de uma doença  no local. As principais hipóteses levantadas foram de  leptospirose, intoxicação exógena e doenças de transmissão hídrica alimentar. O documento constatou o atendimento de 199 dos 656 presos no serviço de saúde com sintomas, 56 internados e seis mortes em razão de um surto de beribéri, doença causada pela falta de vitamina B1, que está associada a uma alimentação inadequada e pobre de nutrientes.

O caso aconteceu no período de março a junho de 2020, quando os presos começaram a apresentar sintomas como vômitos, dor abdominal, náusea e outros. Na época, o Ministério Público do Estado do Piauí, após instaurar o inquérito civil para apurar o caso, concluiu que os presos foram vítimas de envenenamento e, em razão do ocorrido, recomendou a exoneração imediata do Secretário de Justiça, Carlos Edilson Rodrigues Barbosa de Sousa, secretário atual da pasta. Em seguida, o governador do Piauí, Wellington Dias, decretou situação de emergência na CPA.

Após seis meses da sua inauguração, a penitenciária, construída para reduzir o déficit de vagas no sistema prisional piauiense e com a promessa de proporcionar a ressocialização dos presos através da educação, teve presos mortos por falta de alimentação adequada, segundo relatório do Ministério da Saúde.

Um dos fatores apontados no relatório para o agravamento da situação dos presos teria sido a interrupção no envio de alimentos pelos familiares durante a pandemia da Covid-19. Para Bruna Stefanni, articuladora e assessora jurídica da Frente Estadual pelo Desencarceramento no Piauí, este não é um caso isolado. “Isso é algo extremamente denunciado, relatado e comum nas narrativas dos familiares e dos egressos do sistema”, aponta.

Violações desse tipo são vistas pelos órgãos de monitoramento como um tipo de tortura. José de Ribamar, perito do  Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), explica que a ausência das visitas dos familiares, que muitas vezes levam ceias suplementares para os presos, faz com que algumas pessoas cheguem a ficar com hipoglicemia. “Isso não tem outro nome que não seja tratamento cruel e desumano, se é feito um dia ou outro da semana. Se ele é uma prática rotineira, é tortura”, enfatiza.

Para apurar as condições do sistema prisional no Brasil durante a pandemia, o MNPCT realizou um monitoramento, em que foi possível constatar diversas violações de direitos nos presídios do Piauí, como a superlotação e aglomeração em celas. O documento também aponta que não há isolamentos dos casos suspeitos e detectados de Covid-19, além de subnotificação e denúncias de tortura. Segundo dados obtidos da Secretaria de Justiça do Piauí, atualmente o sistema prisional conta com 4.805 presos, com lotação acima da capacidade em 76% das unidades prisionais. Confira abaixo os números de capacidade e lotação por unidade prisional no Piauí.

A violação de direitos se estende a outros pontos como a falta de assistência médica e a superlotação das celas, que fazem com que as pessoas sejam submetidas a condições humanas degradantes, segundo José de Ribamar.  “Muitas vezes aquele grau de violação física tem sido substituído progressivamente por outros tipos de tortura, como a psicológica, e com graves sequelas de todos os níveis”, aponta o perito.

Outras violações são apontadas no monitoramento do MNPTC feito durante a pandemia. O documento registra que os peritos já haviam sido advertidos “quanto à existência de uma lagoa de dejetos junto à Cadeia Pública de Altos que contaminava toda a água daquela unidade prisional. O que se constitui em grave violação por privação e racionamento de água em plena pandemia”, aponta o informe. “Se essa água ainda é racionada, o problema é mais agravado, porque no pouco tempo que o preso tem, ele tem que escolher se toma banho ou se bebe água”, explica o perito José de Ribamar. Quanto a essas denúncias, a Secretaria de Justiça, por meio de sua assessoria, afirma que não procedem.

As denúncias dentro do sistema prisional não se limitam ao estado do Piauí. Segundo levantamento realizado pela Pastoral Carcerária, as denúncias no país aumentaram 82% em um ano (no período de 15 de março de 2020 a 15 de março de 2021 em comparação ao mesmo período do ano anterior). As queixas mais recorrentes são: negligência na prestação de assistência à saúde, falta ou assistência precária no fornecimento de alimentação, vestuário, produtos de higiene pessoal e limpeza e agressões físicas.

Familiares apontam falta de notícias de presos

O distanciamento social é uma das principais medidas necessárias para conter a transmissão do coronavírus entre as pessoas. Mas, dentro do sistema prisional, o isolamento é um dos fatores que prejudicam a comunicação dos presos com os seus familiares. 

A ausência de comunicação mais transparente é relatada pelos familiares e estaria impossibilitando o acesso a notícias sobre a real condição dos presos, como aponta Bruna Stefanni, assessora jurídica da Frente Estadual pelo Desencarceramento no Piauí. “Muitas famílias têm relatado a falta de contato e de diálogo com as instituições do sistema prisional”, aponta. Isso ocorre em razão da suspensão das visitas presenciais como forma de contribuir para o maior isolamento dos presos.

No Piauí, as visitas foram suspensas pela primeira vez em março de 2020 nas 17 unidades prisionais, sendo substituídas pelas visitas virtuais. As visitas presenciais retornaram em outubro de 2020, mas foram novamente suspensas e substituídas pelas virtuais a partir de março deste ano.

A falta de notícias de seus parentes privados de liberdade é uma questão frequentemente levantada e já foi motivo de protestos pelo menos duas vezes em 2020. Na época, familiares buscavam respostas sobre as mortes, casos de adoecimentos graves e também alegavam que recebiam denúncias de que alguns presos estariam sofrendo tortura dentro da penitenciária de Altos (41km de Teresina). O segundo protesto aconteceu em Parnaíba, onde  familiares estavam cobrando notícias sobre o estado de saúde de detentos da Penitenciária Mista de Parnaíba, que foram infectados pelo coronavírus .

A falta de comunicação com familiares é um problema constatado pelo perito do MNPCT, José de Ribamar de Araújo e Silva, responsável pelo monitoramento das unidades prisionais do Piauí. Para o perito, a suspensão das visitas presenciais é compreensível dentro do contexto de pandemia, entretanto,  pode colocar o preso em uma situação mais vulnerável. “Isso representou e muito a incomunicabilidade e todos nós sabemos que muito facilmente isso pode se converter em um vetor de tratamento cruel e desumano, degradante e de tortura. Porque ninguém melhor para vigiar as condições de vida dos seus familiares do que os próprios familiares”, aponta.

Mas, ainda que os familiares atuem como agentes fiscalizadores de possíveis maus tratos e torturas que podem acontecer com os presos dentro do sistema prisional, os familiares também temem pela própria vida. Para Maria Dalva Macedo Ferreira, professora do curso de Serviço Social da Universidade Federal do Piauí (UFPI), os familiares têm medo de se organizarem para atuar de forma mais incisiva. “As famílias não podem se organizar, não é que não possam, mas elas se sentem com receio porque são vistas de uma forma que não podem aparecer, elas têm medo, passam a ser visadas, mas não é só pela questão de poderem aparecer. Elas passam a ser perseguidas e sofrem violência”, relata. 

“Para nossa tristeza a gente pode perceber, nas inspeções que fizemos no Piauí, seja nas visitas in loco ou no monitoramento posterior, diversos graus de violações que resultaram em muitas ações e diálogos que nós viemos tratando até o dia de hoje”, lamenta o perito José de Ribamar.

Em média, 127 pessoas testaram positivo para Covid-19 por mês no sistema prisional do Piauí

A Covid-19 vem se espalhando com rapidez no Brasil e, dentro do sistema prisional, não é  diferente. Segundo levantamento inédito feito pela Agência Pública, duas a cada três prisões no país registraram casos de Covid-19 entre presos desde abril de 2020, quando a pandemia chegou ao sistema prisional.

Para a Pastoral Carcerária, por meio do questionário 2021 “Covid-19 nos presídios”, realizado com familiares de pessoas presas, agentes pastorais, servidores do sistema prisional, entre outros, “a principal denúncia recebida quanto a medidas de impedimento do contágio do coronavírus é de que muitos servidores do sistema prisional sequer usam máscaras, não fornecem informações de prevenção aos presos e, quando fornecem, são informações erradas” – o que reforça a falta de comunicação em relação aos familiares dos presos.  

O questionário também aponta que, neste segundo ano de pandemia, a situação de falta de informação constatada na primeira edição do questionário feita em 2020 se consolidou e foi ampliada, afirmando que: “A falta de informações e a omissão são estratégias de uma política que serve para manter a estrutura torturante do cárcere”.

No Piauí, em média, 127 pessoas testaram positivo para Covid-19 por mês no sistema prisional desde o período em que os casos começaram a ser registrados, em junho de 2020 até o mês de maio de 2021. Segundo dados da Secretaria de Justiça do Piauí (Sejus-PI), os casos positivos de  Covid-19 foram identificados em  todas as 17 unidades prisionais.

Até o fechamento desta reportagem, o número de casos positivos, em maio de 2021, chegou a 1.517, sendo 1.136 pessoas presas e 381 dentre servidores administrativos, policiais militares e penais. Vale ressaltar que o valor total foi somado e atualizado por nossa equipe, e por isso difere do total na tabela abaixo, repassado em 24 de maio pela Sejus. Quanto aos óbitos, foram registrados 1 preso e 4 policiais penais mortos. A unidade prisional com maior número absoluto de casos é a Cadeia Pública de Altos, com 348 casos, seguida da Casa Provisória de Altos, com 298 casos. Confira abaixo os números de casos por unidade prisional.

Segundo outro registro de contágios e óbitos, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça, foi possível constatar, a partir do boletim divulgado em 2 de junho de 2021, que o Piauí ocupa a 5ª posição dentre os estados do Nordeste com maiores registros de casos positivos de Covid-19 dentro das  penitenciárias, atrás apenas de Ceará (1º), Pernambuco (2º), Bahia (3º) e Maranhão (4º).

Quanto às testagens, desde o início da pandemia já foram aplicados 8.547 testes dentro das unidades prisionais piauienses, segundo a Secretária de Justiça do Estado do Piauí, que também afirma que todos os presos que adentram o sistema prisional são testados.

“A ideia é de que o Estado que deveria ser o provedor, ele passa a ser o violador e, infelizmente, isso não é diferente no Piauí”, retoma José de Ribamar, perito do MNPCT.

Procurada, a Secretaria de Justiça do Estado do Piauí, através da sua Assessoria de Imprensa, esclarece que:

– Sobre a interrupção de envio de alimentos pelos familiares aos presos durante a pandemia: as visitas foram suspensas, mas a entrega de alimentos pelos familiares segue acontecendo nas unidades.

– Sobre o contato de familiares com os presos estar prejudicado durante o período da pandemia: após a suspensão das visitas presenciais, foram implementadas as visitas virtuais, onde todos os reeducandos recebem o contato de seus familiares.

– Sobre a superlotação das celas prisionais, falta de assistência médica e subnotificação de casos de Covid-19, bem como a falta de isolamento adequado dos casos positivos: acerca da superlotação, é uma situação inerente ao sistema prisional do país. Em todas as 17 unidades, há equipes multidisciplinares de saúde para a assistência aos internos. Sobre isolamento nos casos de covid-19, em toda unidade há locais específicos destinados para a quarentena e tratamento dos casos positivos.

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Categorias: Reportagem

Aldenora Cavalcante

Jornalista, podcaster e mestra em comunicação pela Universidade do Porto.

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