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Uma conquista de valor

Lei aprovada na última segunda-feira reforça Constituição brasileira no combate à desigualdade salarial; mulheres pretas serão as mais beneficiadas

06 de julho de 2023

A Constituição brasileira garante a igualdade perante a lei, independentemente de qualquer distinção, assegurando o direito à vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade para todas as pessoas. Especificamente, reconhece que homens e mulheres possuem os mesmos direitos e obrigações. No entanto, nem ela, que está no topo do sistema jurídico, é capaz de barrar a persistência do desrespeito à igualdade de gênero. Tornou-se necessário reafirmar constantemente o que está estabelecido em seu texto, estabelecendo legislações que atuem em campos mais específicos. Com o objetivo de fortalecer a igualdade salarial entre homens e mulheres em cargos equivalentes, o presidente Lula sancionou uma lei que promove mecanismos mais incisivos contra a discriminação de gênero. Essa medida busca reafirmar a regra geral estabelecida na Constituição e avançar em direção a uma sociedade mais igualitária, constantemente desafiada pelos diversos tipos de violência de gênero.

Um estudo do Centro de Pesquisas Econômicas e Sociais (Cepro-PI) divulgado no último ano constatou que as mulheres no estado do Piauí têm uma remuneração média 12% menor do que os homens. O levantamento, intitulado “A mulher no cenário socioeconômico do Piauí”, compilou informações coletadas entre 2018 e 2021. Os resultados revelam uma preocupante diferença salarial baseada no gênero. 

Para combater essa realidade, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou nesta segunda-feira (3) a legislação nº 14.611, que garante a igualdade salarial e critérios de remuneração entre mulheres e homens que possuam o mesmo tipo de cargo. A lei aprovada promove alterações na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) com o intuito de assegurar as medidas que promovem a igualdade salarial. A advogada e membro das Comissões de Direito do Trabalho e da Mulher OAB/PI, Noélia Sampaio, explica que a Constituição Federal já proíbe a discriminação com base no gênero, mas que a lei em vigor estabelece maior fiscalização e penalidades para o descumprimento. “Essa nova normatização trouxe outras diretrizes e sanções, que não existiam anteriormente, como por exemplo, aplicação de multa equivalente a 10 (dez) vezes o valor do salário da empregada discriminada, podendo ser duplicada, em caso de reincidência”, ressalta. 

Noélia acredita que a legislação é um passo importante em direção à maior igualdade de direitos entre homens e mulheres. No entanto, ela também reconhece que é necessária uma mudança mais profunda para reduzir a discriminação enfrentada pelas mulheres no mercado de trabalho. “Trata-se de um grande avanço, ainda que saibamos que carece de uma mudança de cultura. Sabemos que a discriminação da mulher no mercado de trabalho ainda persiste e essa mudança necessitava de medidas como essa. Apenas com legislações dessa natureza pode haver maior efetividade”, conta.

Em vista do cumprimento da igualdade salarial, a legislação sancionada estabeleceu mecanismos de transparência e remuneração que devem ser seguidos pelos empregadores. Entre as medidas, ficou estabelecido que as empresas que possuam 100 ou mais empregados serão obrigadas a publicar, semestralmente, relatórios de transparência salarial, em conformidade com a legislação geral de proteção de dados. Noélia ressalta que a lei promove o fortalecimento da fiscalização e da diversidade no setor laboral. “Fica determinado que as empresas providenciem mecanismos de transparência dos salários dos empregados, que procurem incrementar a fiscalização, criando canais específicos para denúncias para  casos de discriminação salarial e fomentem a inclusão e diversidade no ambiente de trabalho”, informa. 

Os dados coletados a partir dos relatórios serão utilizados pelo Governo para melhorias de políticas públicas, como construção de creches, serviços de saúde, entre outros. O descumprimento da lei prevê que as funcionárias prejudicadas tenham acesso ao pagamento da diferença salarial devida e à indenização por danos morais. Além disso, a lei abrange outras formas de discriminação, como aquelas baseadas em raça, etnia, origem ou idade. 

Acúmulo de responsabilidades

Gerenciar a limpeza diária e a organização da casa, preparar refeições, cuidar dos filhos e dos demais membros do lar, supervisionar as atividades escolares das crianças: tudo isso enquanto mantém um ambiente acolhedor e harmonioso, mesmo diante das demandas e atividades do trabalho. Além da desigualdade salarial em relação aos homens, as mulheres também enfrentam desafios decorrentes da sobrecarga da dupla jornada, conciliando trabalho remunerado e responsabilidades domésticas; é o que indica o relatório do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Segundo a pesquisa, em 2019, as mulheres dedicaram quase o dobro do tempo em cuidados e afazeres domésticos, passando cerca de 21,4 horas semanais nessas diligências. Em contraste, a média masculina foi de 11 horas semanais para as mesmas atividades. A secretária de Estado das Mulheres do Piauí, Zenaide Lustosa, destaca as dificuldades vivenciadas pelas mulheres devido a esse acúmulo. “Nós sabemos que as mulheres já começam sendo penalizadas, muitas vezes impedidas de entrar no mercado de trabalho formal devido às responsabilidades que já temos. Cuidamos da casa, dos filhos, dos parentes, e isso acaba afetando nossa inclusão no mercado. É necessário implementar políticas que possibilitem a presença das mulheres no mercado de trabalho”, relata.

Além do gênero, a raça

Fora os desafios da dupla jornada e do sexismo, as mulheres enfrentam obstáculos adicionais no mercado de trabalho devido às desigualdades raciais. A discriminação racial contribui para a limitação de oportunidades de emprego, a disparidade salarial e a falta de representatividade em cargos de liderança. Informações do IBGE, coletadas a partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) de 2019, mostram que, apesar de mais instruídas, as mulheres ocupam 37,4% dos cargos gerenciais e recebem apenas 77,7% do rendimento dos homens. Quando se trata das mulheres negras ou pardas, esse percentual cai para menos da metade, atingindo 46% em relação a média salarial masculina. Zenaide diz que a lei de igualdade salarial entre homens e mulheres deve beneficiar, em especial, as mulheres negras. “Essa lei é uma conquista das mulheres e um avanço que traz benefícios para elas. Sabemos que as mulheres assumem o mesmo cargo, mas muitas vezes recebem salários menores em comparação aos homens, especialmente as mulheres negras. A lei resgata alguns artigos da CLT e inclui mecanismos para transparência salarial e fiscalização dos critérios de remuneração”, comenta.

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A dupla discriminação resulta em disparidades salariais ocasionadas, tanto pela questão de gênero quanto da questão racial. A presidente do Instituto da Mulher Negra do Piauí (Ayabás), Halda Regina, explica como o racismo impregnado na sociedade cria entraves para o acesso de pessoas pretas ao mercado de trabalho. “Viver num país onde o Racismo chega a ser um pilar que estrutura e sustenta uma pequena parcela da sociedade, que usufrui das melhores condições de vida, é conclusivamente saber que o acesso ao mercado de trabalho é uma dificuldade/problemática para a comunidade negra e principalmente para todas as mulheres pretas deste país”. 

[Leia mais: Homens pardos têm patrimônio dez vezes maior que mulheres pretas nas eleições piauienses ]

Menor participação, altas taxas de desemprego e informalidade em comparação a outros grupos demográficos, baixa remuneração, vínculos empregatícios precários. Essas dificuldades refletem uma combinação de questões históricas, culturais e socioeconômicas que afetam a inserção das jovens mulheres pretas no mercado de trabalho.  O censo “Diversidade, Representatividade e Percepção“, realizado pela consultoria Gestão Kairós, revelou que em 2022 persistia uma grande disparidade na presença de mulheres negras nas empresas. Embora as mulheres representassem 32% do quadro funcional, apenas 9% delas se autodeclaravam negras, um número quase 10 vezes menor do que o de mulheres brancas. Haida explica que, mesmo quando mulheres pretas possuem uma qualificação profissional, ainda existe dificuldade de inserção no mercado. “Nosso maior desafio é quebrar estas estruturas de estado que não dão condições de sobrevivência para as mulheres negras, que em sua maioria atuam em várias lutas pela suas vidas, da família e da comunidade. Sempre algo gritante no Brasil, muitas mulheres no enfrentamento ao sistema lutaram e lutam por mudanças. Até mesmo quando temos a mesma qualificação e capacidade técnica e intelectual. Isso é fato”, desabafa. 

Ocupação feminina no quadro funcional das empresas entre 2019 e 2021 (FONTE: Gestão Kairós)

Para se aproximar de uma justiça social, a igualdade salarial deve encarar as questões de racismo que se relacionam com as de desigualdade de gênero. Halda ressalta que a interseccionalidade entre essas questões exige políticas que abordem as disparidades salariais enfrentadas por mulheres de diferentes origens étnicas, garantindo equidade salarial abrangente. “Importante demais que as políticas pudessem se atentar para o recorte de gênero e raça, essa interseccionalidade ajuda a sociedade entender que as mulheres são plurais e vivem em situações diferentes.  Mulheres brancas têm mais acesso às políticas públicas e ascensão social. Mulheres pretas precisam mais políticas para que possam alcançar uma igualdade entre as mulheres brancas, quiçá com os homens brancos. Nós Mulheres Negras temos realidades diferentes, que são atravessadas pelo racismo e sexismo”, conta.

 Ao limitar o potencial de crescimento e contribuição das mulheres, especialmente das mulheres pretas e de outras minorias, a sociedade está perdendo oportunidades valiosas de aproveitar todo o potencial de talentos, habilidades e perspectivas únicas que elas podem oferecer. A diversidade de gênero e raça traz uma riqueza de experiências e conhecimentos que podem impulsionar a inovação, a criatividade e o progresso em todos os setores da sociedade.

 

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