domingo, 28 de abril de 2024

“Pessoas mudam mais rápido que as estruturas”

Um papo sobre sustentabilidade e consumo com André Carvalhal, autor de “Como salvar o futuro - ações para o presente”

31 de março de 2023

André Carvalhal está cansado de dizer o óbvio. Nós somos natureza. “A gente vinha no carro falando ‘nossa, e estamos indo falar isso pras pessoas’, sorri. “É quase como meditar para aprender a respirar ou ir para um retiro espiritual, como se aqui não tivesse também espíritos”, completou, arrancando risos da plateia que lotou o teatro do Sesc Cajuína na noite desta quinta-feira, 30, no evento “O futuro em nossas mãos”.

(Foto: Regis Falcão)

Ao lado de Aílton Krenak, o escritor e publicitário falou para uma plateia de 600 pessoas. Pela primeira vez no Piauí, lançava seu mais recente livro, “Como salvar o futuro – ações para o presente”, onde compartilha reflexões no melhor estilo design-ativismo sobre o que podemos fazer hoje para evitar um colapso do planeta, amanhã.

Carioca, filho do Méier, André tem no currículo passagem por grandes agências de publicidade e por cargos executivos em marcas como Farm e Foxton. “Eu estava lá fazendo propaganda de carro, cigarro e bebida, sem consumir nenhum desses produtos”, desabafa. A virada de chave na carreira o levou a atuar como consultor de sustentabilidade para grandes empresas. Hoje, viaja o país levando um pouco da sua experiência e compartilhando reflexões escritas em alguns de seus livros, que figuram na lista de mais vendidos no Brasil nos últimos anos. (“Viva o fim – almanaque de um novo mundo”, finalista do 61º Prêmio Jabuti; “Moda com propósito” e “Como libertar o presente – cocriação de narrativas”).

(Foto: Regis Falcão)

André é vegetariano, tem o hábito de dormir cedo e gosta de sentar para escrever antes mesmo do sol sair. No papo exclusivo com oestadodopiaui.com, reflete sobre temas em pauta na atualidade, como consumo, inovação, sustentabilidade e, é claro, o futuro.

“Água em escassez, bem na nossa vez”, diz Emicida na música. Foi mais ou menos assim que você se sentiu quando chegou ao “futuro” que pensava existir para além da infância?

Sim. Foi mais ou menos assim que eu senti, mas ao mesmo tempo foi importante ter essa constatação, porque foi a partir dela que eu entendi que o futuro, na verdade, é uma grande ilusão. Ele é algo que a gente pensa, que a gente planeja, que a gente deseja mas, que se a gente não coloca ação, ele não se concretiza – ou se concretiza de uma forma diferente da que a gente gostaria que fosse. Outro insight que eu tive ao longo desse processo é de que o futuro está sempre por vir. Quando eu estava lá, pequeno, o meu futuro que chegou é esse de agora. Mas, ao mesmo tempo, eu tô agora construindo o futuro de daqui a uma hora, daqui cinco anos, daqui dez anos ou seja lá quanto tempo eu ainda estiver por aqui. Então, esse entendimento de que futuro, presente e passado estão muito conectados e de que, na verdade, o que a gente tem é o agora, também acaba tirando um pouco dessa sensação de que “agora que chegou a minha vez, eu não tenho”. O que nós, coletivamente, podemos fazer para que todos nós possamos ter?

Você trabalhou muito tempo com publicidade, ou seja, despertando desejos de consumo nas pessoas. Qual foi a chave pra virada no seu pensamento e propósito?

Eu fiz duas grandes transições de carreira na minha vida. Comecei trabalhando com propaganda e depois eu fui pra moda. Depois eu saí da moda e fui para a sustentabilidade. E eu acho que é difícil elencar um ponto de virada, um único motivo. Todos esses dois movimentos tiveram a ver com uma mudança de consciência minha, pessoal, que foi surgindo e acontecendo ao longo dessa trajetória. Conforme eu fui percebendo coisas que não tinham sentido pra mim, coisas que não me agradavam, coisas que não eram verdade. E o compromisso de buscar sempre uma coerência entre aquilo que eu faço, que eu falo, que eu vivo: isso sempre esteve muito presente dentro de mim. É o que me fez tomar essas decisões e fazer essas rupturas. Desde quando eu estava lá fazendo propaganda de carro, cigarro, bebida, sem consumir nenhum desses produtos. Ou depois, quando eu estava na moda e não tendo mais desejo pela moda da forma como ela estava estabelecida. Acho que tudo isso primeiro aconteceu dentro de mim a partir de uma evolução, de um amadurecimento, para que então chegasse numa atitude e numa transformação.

(Foto: Regis Falcão)

Como consultor de projetos para grandes marcas (como Ambev, Grendene, Unilever, Coca-cola etc), o que você pode apontar como principais desafios para as empresas no que diz respeito à inovação e sustentabilidade?

O que eu vejo muito é que as pessoas têm a chance de mudar mais rápido do que as estruturas. O que me levou a fazer consultoria para grandes marcas foi uma vontade de causar mais impacto, de tomar ações, contribuir com mudanças estruturais mais profundas e que impactam muita gente. E eu me deparei muitas vezes, dentro dessas empresas, com pessoas que tinham também essa vontade mas tinham muita dificuldade de promover essas mudanças, devido às formas de funcionamento, os processos, as expectativas, as metas, os indicadores. Acho que essa é a grande dificuldade. Eu já estive em empresas onde existia um direcionamento de quem estava no topo da organização, de promover a mudança, e as pessoas que estavam no dia a dia não tinham essa consciência. E já estive em empresas onde as pessoas com quem eu dialogava diariamente tinham essa consciência, mas não eram apoiadas por quem tava acima e tomava as decisões. Então, entender que existe uma questão pessoal de quem está à frente, muitas vezes, pode estar descompassado do restante da empresa.

Muita gente ainda acha que sustentabilidade é algo que diz respeito só à natureza; salvar os golfinhos, etc. Essa é uma ideia equivocada?

Essa pergunta carrega em si uma pegadinha. Eu entendo o que você diz e, de fato, existe esse status quo, esse senso comum em grande parte das pessoas, de que a gente tá protegendo as árvores, o mar, os bichos, a floresta, de que a gente tá protegendo alguma coisa fora da gente, que a gente chama de natureza – mas a gente muitas vezes esquece que a gente faz parte da natureza. A gente veio do mesmo lugar que todas essas coisas. De tudo que ta a nossa volta. E quem diz isso não sou eu: é Projeto Genoma, é a Ciência, que já comprovou isso. Quando a gente entende por esse lado, a gente entende que quando estamos cuidando das outras pessoas, quando a gente tá trazendo outras pautas que têm a ver com questões sociais, de diversidade, questões humanas que estão entrando cada vez mais na pauta da sustentabilidade e que são importantes serem reconhecidas também como isso, na verdade elas são questões da natureza –  só que a gente não entende desse jeito. A gente nomeia natureza como algo que tá fora da gente e muitas vezes, por conta disso, a gente não entende que, quando a gente tá fazendo toda essa movimentação, a gente tá fazendo pelo próximo, pela árvore, pelo bicho, pela água, por tudo. Então não seria errado dizer que a sustentabilidade tem a ver com a natureza, somente. A gente precisa é expandir o nosso conceito do que é natureza.

Evento teve sessão de autógrafo com os autores ((Foto: Regis Falcão))

A dica para um consumo consciente pode estar em burlar a obsolescência programada: ou seja, muitas vezes o consumo consciente pode ser exatamente não consumir. É difícil aplicar isso num sistema capitalista, não?

É difícil, e a gente tem que ser realista de que é difícil não consumir. E, talvez, consumir não seja um problema. A gente consome tudo a todo momento. A gente consome notícia, informação, o ar, bens, um monte de coisa. Mas a gente, muitas vezes, não tem consciência do que gera a necessidade ou o desejo do que a gente tá consumindo. Então, o consumo, de fato, ele movimenta o sistema capitalista. Ele gera emprego, desenvolvimento, uma série de coisas. Mas ele também gera coisas ruins. Eu gosto muito mais de falar de consumo consciente não somente como o ato de não consumir, mas um ato de repensar o consumo e ter consciência sobre aquilo que se está consumindo – e consciência sobre o desejo e a necessidade daquilo que consumimos. Por exemplo: se eu sou um médico, eu posso precisar de dez camisetas brancas, mas se eu não sou um médico talvez eu não tenha essa necessidade. E ao mesmo tempo eu posso ter vontade de comprar dez camisetas brancas, porque a cada mês um ou outro modelo sai da moda. Então eu acho que a questão tá mais na falta de consciência sobre o que a gente tá comprando e porque a gente tá comprando e como essas coisas são feitas e qual o impacto de tudo isso. E entender que, hoje, a gente pode consumir de formas diferentes também: trocando, pegando emprestado, fazendo – encontrando outras alternativas que não seja somente acumular.

domingo, 28 de abril de 2024

Luana Sena

Jornalista, mestra e doutoranda em comunicação na Universidade Federal da Bahia.

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