domingo, 28 de abril de 2024

Coração no ritmo da terra

No Piauí, Ailton Krenak fala para um público de 600 pessoas e diz que “fomos idiotizados pelo excesso de tecnologia”

03 de abril de 2023

O avião que trazia Ailton Krenak já sobrevoava Teresina quando uma chuva, dessas de verão, inesperada e passageira, resolveu molhar a terra. Tão sem aviso quanto os pingos d’água caindo do céu, foi o momento em que o tempo abriu, a água evaporou e, rapidamente, as nuvens cinzas deram espaço a uma tarde linda de sol. Foi como se o céu todo preparasse um espetáculo para recebê-lo.

Ailton Krenak (Foto: Regis Falcão)

No camarim do Sesc Cajuína, que sediou o evento “O futuro em nossas mãos”, conto a ele a expressão piauiense que usamos para descrever um céu como aquele que ele viu da janela do avião: “bonito pra chover”. “Que coisa maravilhosa!”, disse sorrindo com os olhos fechados, num jeito bem característico seu de admirar-se. “Vocês sabem das coisas, porque chuva é água, e água é nosso bem precioso”. 

Leia mais: O futuro em nossas mãos

Naquela noite, Ailton subiu ao palco ao lado de André Carvalhal, e falou para um público de 600 pessoas. Compartilhou suas reflexões sobre o tempo, as comunidades plurais, os danos de consumir a Terra, as novas tecnologias e as chances de um futuro do matriarcado. “A gente deveria cancelar o excesso de tecnologia”, aconselhou. “Fomos idiotizados por ela”.

Krenak sobe ao palco do evento “O futuro em nossas mãos” (Foto: Regis Falcão)

Ailton Krenak é o ativista indígena mais lido do país. Seus livros, publicados pela Companhia das Letras, foram traduzidos para mais de dez idiomas. “Ideias para adiar o fim do mundo” (2019) e “A vida não é útil” (2020) ficaram por meses na lista dos mais vendidos. No começo de março, o mineiro da região do Vale do Rio Doce, tomou posse na Academia de Letras do seu estado, passando a ocupar a cadeira 24. “Eu andava por aí com uma possibilidade óbvia de morrer”, brincou. “Agora sou imortal”. 

Aílton não anda no banco da frente do carro, gosta de nhoque ao sugo e escuta as pessoas com atenção e generosidade. Tem prazer em ouvir e contar histórias – não despreza nenhuma pergunta, nem acha que a pressa deve ser motivo para suprimir as palmas. Veja o papo exclusivo para oestadodopiaui.com, com o desejo de adiar o fim da conversa.

Que reflexões levaram à ideia de um futuro ancestral? 

Eu tava falando naquele programa Roda Viva, da TV Cultura, e, num amplo discurso sobre diferentes questões ambientais, Amazônia, Brasil e aquela crise política que a gente estava vivendo no ano passado, a jornalista me perguntou, meio que encerrando o programa: “E o futuro?”. Eu não ia mais ter tempo pra dissertar, então falei: “O futuro é ancestral”. E aquilo repercutiu. Todo mundo agora, até o Alok, já tá falando em futuro ancestral. (sorri). Quando o meu livro ficou pronto, a editora Companhia das Letras buscou uma pessoa que eu admiro muito, o professor Muniz Sodré, para fazer o prefácio, a apresentação do livro. Eu fiquei muito contemplado quando esse mestre relacionou o meu pensamento à tradição não-europeia, que ele acha que tem uma sensível relação com o pensamento de povos de matriz africana. Quer dizer, a África também é um continente que não produziu para esse mundo ocidental alguma coisa que pudesse ser entendida como filosofia. E foi isso que levou o Muniz Sodré a considerar que estava diante de um filósofo originário. De um pensamento estranho, capaz de dar conta de questões que a razão ocidental ignora ou subestima mesmo, que é o passado, no sentido profundo, no sentido que as cosmovisões de povos não-europeus carregam como alguma coisa intrínseca. É como se estar presente aqui fosse evocar o tempo inteiro essa memória ancestral. A ideia de que esse corpo que está presente aqui, agora, ele é o contínuo de experiências anteriores a nós, numa espécie de uma sequência que nunca cessa, da vida. 

Esse livro fecha uma trilogia (“A vida não é útil”, “Ideias para adiar o fim do mundo” e “Futuro ancestral”), se é que podemos chamar assim, de pensamentos contemporâneos com sucesso de venda no país e no mundo…

É, quem olha de fora fala: “Esse cara tinha o projeto de comunicar uma ideia”, mas não foi isso. Foi com a espontaneidade mesmo, da oralidade, numa tradição que eu sempre me nutri, a experiência de contar histórias. Em “Ideias para adiar o fim do mundo” eu digo que uma maneira de adiar o fim desses mundos é exatamente contando histórias. Então eu apelo para a potência de contar história como uma maneira de criar o mundo também – não só esse em que estamos inseridos mas a possibilidade de outros mundos. Eles aparecem a partir de narrativas. E às vezes eu até invoco a frase da Chimamanda que diz: “Um mundo com uma única narrativa está fadado ao dano”. Porque, são matrizes de pensamentos ameríndio ou africano ou de outros povos não europeus, que evitaram uma única narrativa de mundo. Nunca encaixaram essa ideia de que tem um mundo só. Sempre experimentaram pluriversos. Muitos são profundamente implicados com cosmovisões, com uma ideia de criações de mundo que é plural. Não existe um presente parado. Um presente agora. Existe sempre uma recriação do mundo.

 

(Foto: Regis Falcão)

Uma ideia central também em “Ideias” é a da separação entre humano e natureza. Porque isso é um equívoco?

Tudo aquilo que a gente chama de não-humano – desde os peixes, os pássaros, as árvores, tudo – vai constituindo alguma coisa que, ao fim do século XIX, XX, vai se configurar como natureza. E nós, os espertalhões dos humanos, estamos aqui para operar em cima dela, encarando como “recursos”. Que na verdade é uma narrativa muito absurda, porque nada é infinito. Nem a nossa experiência de existir, nem o mundo ao nosso entorno. Tudo é finito. Tudo. E a única possibilidade “sem fim”, é a vida. A vida não tem fim, a vida é uma dança cósmica. Nessa perspectiva de um filósofo originário, a vida é uma experiência transcendente, que atravessa a lagarta, a borboleta, o peixe, a árvore, o meu corpo, a pedra, o rio. A vida passa em nós todos. Se espalhar pelos lugares é exatamente não se separar de lugar nenhum. É sentir que você é água, que você é pedra, que você é vento, que você é a experiência total disso que chamam de natureza. Não tem separação. 

O Piauí é hoje uma grande fronteira agrícola da monocultura, da soja e do milho. No futuro ancestral, como a gente vai produzir comida para tanta gente? 

Às vezes a gente pensa na solução dos problemas partindo dos problemas. Acho que atribuem ao Einstein a frase de que a gente não consegue resolver um problema com o mesmo material que a gente criou o problema. Acabou o repertório de solução. A gente só tem capacidade de multiplicar o problema. E a maneira como nós multiplicamos globalmente o problema, hoje, é o modo de reprodução errado do humano. O humano disparou. As pessoas não têm mais consciência de quantos nós somos – e também não tem nenhum planejamento de quantos seremos. Tem a possibilidade de daqui a pouco a gente ser 15 bilhões. Se isso acontecer, nós vamos implodir a vida no planeta Terra. Nós vamos nos tornar uma bomba. Agora, nenhum governo tem coragem de botar em questão esse modo de reprodução da humanidade. Todo mundo faz de conta que ele é orgânico, natural. Pro mercantilismo, depois capitalismo no século XVIII, XIX e XX, aumentar gente no planeta era criar consumidor. Era aumentar mercadoria. Era dobrar a aposta no cassino. Só que o trem disparou e ninguém consegue controlar isso. Nem uma pandemia. A gente teve o horror da pandemia, mas a gente não “estava de boa”. Tem um alerta biológico dizendo que a gente já chapou o planeta de presença humana. E os próximos eventos extremos, climáticos, vão fazer desaparecer bilhões de pessoas. Eu não sou profeta do apocalipse. Mas pode anotar que antes de 2050 é bem provável que metade dessa população do planeta seja despachada daqui por pandemias, conflitos bélicos, migrações, desordem geral e outros eventos que nós nem conseguimos imaginar ainda. Porque nós pesamos sobre a Terra. 

 

“Andar suavemente sobre a Terra…”

Pois é, não tem mais como. Um nenezinho, que nasce numa maternidade, já sai da incubadora com uma fralda pregada na bunda. Aquela fraldinha, aquele material, não vai se dissolver. O neném vai nascer, crescer, morrer e a fralda vai ficar empesteando o planeta. Vão demorar 100, 200 anos para ser absorvida. Tão dizendo que agora tem biodegradável. Mas biodegradável o que? Dentro da biosfera do planeta, qualquer produção nossa é lixo. 

Leia mais: “Pessoas mudam mais rápido que as estruturas” – entrevista com André Carvalhal

Até bem pouco tempo, o Piauí era um dos poucos estados (junto ao Rio Grande do Norte) que não tinha terra indígena demarcada. Isso foi resolvido em 2021, é bastante recente. A gente era ensinado na escola que não havia povos indígenas no Piauí. Acabamos de passar por um governo que tinha um projeto orquestrado para continuar matando povos indígenas no Brasil. O Estado, de um modo geral, um dia vai conseguir aniquilar a dívida com os povos tradicionais?

No período colonial, Portugal administrando essas terras novas, decidiu, em algum momento, declarar que a população originária desta região, que veio a ser o Piauí, como também o Ceará e outras regiões do interior do sertão, eram súditos. Não eram mais tapuios, estranhos, estrangeiros nativos. Foram integrados. Foi uma declaração que decidiu que essa gente que vivia aqui não era mais índio. Agora era essa matriz que veio a constituir vocês, o povo do Piauí. Foi um truque. Alguém criou isso há duzentos anos. O lugar onde era uma aldeia, virou uma vila. As lideranças daquela comunidade, viraram prefeito, juiz de direito. Foram assumindo cargos, funções estranhas à organização social deles. De uma hora para outra foram todos transformados em munícipes. Tiveram que ter registro civil, mudaram de nome, eventualmente de religião. E isso já aconteceu na história em outras épocas e em outros lugares do mundo. Eu quero ver o dia em que alguém vai dizer: “O Piauí é indígena”. Uma declaração. Não tem que ter muito problema pra fazer isso. Ficam falando em reparação histórica, indenização, e isso é só pra criar uma dificuldade monumental e vai enrolando. A gente não fez esse caminho que deu errado? A gente pode agora tentar fazer de uma maneira que dê certo. Só isso.

Ailton recebe fãs em sessão de autógrafo (Foto: Regis Falcão)

Leia mais: Cabeça na terra, pé no chão – entrevista com Ailton Krenak

Não podemos nos render à narrativa de fim de mundo porque ela serve pra nos fazer desistir dos nossos sonhos. E você, Aílton, aos quase 70 anos: com o que tem sonhado?

Ah, eu sonho o tempo inteiro. E a relação do sonho com a possibilidade objetiva daquilo acontecer, é que há distância. Você pode sonhar tudo. Agora você tem que ser capaz de discernir, de todos esses sonhos, quais os que podem aterrar em algum lugar. Fincar raiz. Ter uma existência pelo menos na duração de uma safra. Que você possa plantar o milho, ou a batata, e colher, pelo menos. Isso já seria considerar uma experiência razoável para uma humanidade que não para de crescer e que não pensa o que vai comer amanhã. 

domingo, 28 de abril de 2024

Luana Sena

Jornalista, mestra e doutoranda em comunicação na Universidade Federal da Bahia.

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