Sueli Rodrigues surge brilhante. Seu vestido com xilogravuras é colorido, alegre e leve, contrastando com a expressão a maior parte do tempo séria que ela apresenta. “Foi presente de uma amiga”, responde ao meu elogio. Sentamos para conversar no terraço de sua casa, em uma manhã quente de novembro. É a primeira entrevista que faço de forma presencial em dois anos de pandemia. O corpo fala – no caso de Sueli, mesmo em silêncio ele é capaz de dizer muita coisa.
Em julho do ano passado, a professora doutora em Direito, Estado e Constituição pela UnB foi abordada por um dos alunos a quem orienta a pesquisa na Universidade Federal do Piauí, onde dá aulas no programa de mestrado. “Ele perguntou se eu não estava notando a minha fala mais espaçada”, relembra. “Eu não estava”. O semestre de aulas acabou, e nas férias vieram outros sintomas: um cansaço arrebatador.
Foram meses entre consultas e exames, na busca por um diagnóstico. Ele só viria em agosto deste ano. Sueli – a professora Sueli, como ficou conhecida na campanha para governo do estado em 2018 – descobriu a doença do neurônio motor central na forma bulbar, que começou se manifestando pela fala. “O primeiro neurologista me deu uma sentença de morte: ‘Não fale, não ande, porque você vai ficar sem respirar’”, relembra. “Chorei por dois dias”.
Em 2020, já doente e em meio à pandemia, Sueli lançou-se na primeira candidatura coletiva de mulheres negras para ocupar a Câmara Municipal de Vereadores em Teresina, pelo PSOL. Ela, como diz, sempre foi da política de bastidores, de formação. “Tudo que a gente faz é político”. Natural para quem tem uma existência política – mulher, negra, filha do semiárido, ainda menina veio para a capital atrás de estudo, incentivada pela avó, que não sabia ler nem escrever. “Deixei de ser doutora no pensamento da minha avó para aprender tudo sobre o eurocentrismo”.
O tom não é de arrependimento, mas de quem desenvolveu ferrenhamente o pensamento crítico. Desde o início de sua carreira acadêmica, Sueli esteve ligada às questões de desenvolvimento, meio ambiente, convivência com o semiárido e povos originários. Sua tese de doutorado pesquisa os conflitos da instalação do Parque Nacional Serra da Capivara com as comunidades quilombolas existentes no município de São Raimundo Nonato – região com extensa concentração de povos tradicionais no Piauí. Entre pesquisadores e juristas, Sueli é conhecida como a única intelectual no Brasil que ousou fazer objeção ao cultuado projeto do parque, justificado sob o argumento do desenvolvimento e incentivo ao turismo no estado.
De pesquisadora, passou a ser pesquisada. Curiosa e com sede de entender mais sobre a doença que desenvolveu, descobriu um uma pesquisa envolvendo os Estados Unidos, países da Europa, Argentina e Brasil. Agora ela faz parte de duas investigações: uma da USP e outra nos EUA, comandada por Hande Ozdinler, renomada especialista. “Um orientando meu do MST me botou em contato com representantes deles nos EUA e, através das redes sociais, conheci a doutora Hande, que estudou essa doença no mestrado e no doutorado”, conta ela, que divulgou o perfil da cientista nos grupos de pesquisa que comanda. “Agora tem um monte de piauiense seguindo ela” (sorri).
É paradoxal pensar que alguém com tanto para falar – e Sueli fala de forma clara, didática e objetiva, sem a arrogância intelectual comum a muitos acadêmicos – desenvolva um quadro que limita sua própria voz. “Essa doença me atacou”, afirma. “Mas muitas outras pessoas vão dar continuidade a isso”. Sueli desmente qualquer prognóstico. Agora ela está ocupada em ensinar e convocar a desobedecer.
Luana Sena: Quando e como chegou ao diagnóstico?
Sueli Rodrigues: No início da pandemia eu comecei a perceber o meu rosto tremendo. Mas não dei muita importância, não. Em julho eu estava dando aula no mestrado e um aluno, que é meu orientando, disse assim: “Sueli, você não percebe que a sua voz está mais espaçada?” E eu não percebia, não. Aí eu fiquei perguntando em casa se a minha voz estava diferente e ninguém dizia. Depois a minha filha disse que estava percebendo, mas não queria me preocupar. Em setembro aconteceu tudo.
Tudo o que?
Aconteceu a fraqueza permanente. Eu não conseguia nem me levantar. O meu corpo tremendo inteiro e eu não sabia o que era. Eu julgava que eram duas doenças: uma da fraqueza, porque já tinha tido isso em 2000. E a doença da prega vocal paralisada. Até então eu não percebia que o meu lado direito estava mais grave, que eu estava com menos força. E não percebia que meu lábio não estava segurando o alimento. Eu não percebia nada disso. Entrei na campanha para vereadora já doente. Teve um dia que entrei no carro e não conseguia ligá-lo. Ai eu disse: “Pra onde eu vou se não consigo nem ligar o carro?”. O médico otorrino apostava que tinha sido AVC. No início de dezembro eu fui e levei os exames todos: não era AVC. Ele disse: “Pois é tumor”. Aí ele passou outros exames e eu fui fazer só em janeiro. Estava cansada. A primeira médica, uma gastro, passou 48 exames! O primeiro neurologista me deu uma sentença de morte: “Não fale, não ande, porque você vai ficar sem respirar”. Eu estava sozinha. Chorei por dois dias. Achava que era uma doença menor. Nunca pensei num negócio desses. Depois procurei um segundo, um terceiro e um quarto – já estou no quinto. Em São Paulo, é o sexto.
É uma doença hereditária?
Eu pensava que era. Mas o médico disse que só em 5% dos casos. E, pra você ter, ou seu pai ou sua mãe deveria ter. Um médico lá de São Paulo perguntou como eu nasci, e eu não sabia. Fui perguntar para a minha mãe: eu deveria ter nascido em maio, e nasci em junho. 10 meses. Minha mãe disse que eu era tão grande, tão grande, que ela pensava que ela e eu iríamos morrer. Foi uma parteira que nunca tinha feito um parto. Minha mãe sentiu dor e ela me arrancou do ventre da mamãe. Eu não fazia ideia dessa história. Achava que eu tinha uma energia muito forte. E um pesquisador da USP disse que o neurônio de quem tem a doença do neurônio motor funciona seis vezes mais. É como se eu tivesse mais de 100 anos. Ele degenera porque eles trabalharam demais. E eu sentia assim. Trabalhei dez anos no Colégio das Irmãs e ficava corrigindo prova, não dava sono, me levantava, fazia um café e ia dar aula a manhã toda. Achava que era vício de trabalhar demais. Mas não era, era o neurônio trabalhando seis vezes mais.
E não há ainda tratamento, certo?
Tem duas pesquisas que estou para experimentar. A da USP é sobre um neurônio doente não informar para o outro que está doente – porque o neurônio informa e morrem todos. E a dos Estados Unidos, com a doutora Hande, que criou o NU9, que foi testado em ratos e agora vai testar em macacos. É um medicamento que recupera o neurônio. O NU9 eu já sabia, mas achava tão distante. Na verdade, no tempo de Stephen Hawking se achava que era uma doença que acometia quem era atleta. Aí depois descobriram que outras pessoas podiam ter. No tempo dele a aposta era de que era o neurônio de baixo. Quem avançou para o neurônio superior foi a doutora Hande. Ela fez mestrado e doutorado nos anos 1990 já investigando o neurônio superior. Tem uma entrevista dela em que ela diz que ouviu, quando fazia medicina, um professor dizer que o neurônio superior não servia para nada. Aí ela ficou curiosa e foi investigar o neurônio superior.
Desde o diagnóstico, o que mudou em sua rotina?
Mudou tudo. Eu estava dando aula o primeiro semestre todo, mesmo com essa voz arrastada. Terminaram as aulas em julho e dei entrada no atestado para seis meses. Fui para a perícia, eles disseram que eu já podia pedir aposentadoria. Mas não pedi ainda. Fico com medo de ficar só pensando na doença. Antes eu saia para a clínica – agora os profissionais que vêm aqui. Aí eu não sei. Estou muito indecisa. Eu tinha uma energia enorme, aí acabou tudo.
Você, que é uma intelectual, tem muita leitura – não sei se tem nem qual é sua formação espiritual, se segue alguma doutrina – mas, quando se recebe uma notícia dessas, isso muda a perspectiva sobre a vida? Você se apega a algum tipo de crença?
Não. Nenhuma. A crença é que a gente tem uma energia vital. E quando a gente morre, essa energia não sai com seu nome por aí. Ela sai como energia e vai apresentando uma forma de vida ou uma energia que o vento leva. Acredito que, se tem uma coisa sagrada na nossa vida, é a própria vida. Não penso que isso seja moral. Que eu esteja pagando um pecado. Não. Acho que foi meu nascimento que foi muito complicado e eu não tinha como saber antes. Porque tem gente que manifesta com 20, 30, 40 anos. Mas o normal é entre 50 e 60. Quando manifestou para mim eu tinha 55. Então é a idade em que normalmente aparece. Não vou ficar pensando que é culpa de deus, que um deus está me castigando(faz uma pausa). Olha, não é pensando que sou perfeita – ninguém é perfeito. Mas pense como eu penso no bem das pessoas! Se eu pensasse assim, ia ficar com muita raiva de deus. A terra é que é a nossa mãe. E eu cultuo a minha ancestralidade do jeito que os africanos faziam no passado, que não fazem mais, e do jeito que os indígenas faziam. Acredito muito que essa história de espírito foi para o ser humano se sentir superior às outras vidas. Posso cortar uma árvore, matar todas as vidas. E isso é terrível.
No meio disso tudo – pandemia, aulas remotas, a busca por um diagnóstico – surge a ideia de lançar um novo livro. Como foi isso?
A Jean! (diz sorrindo, referindo-se a Jeanete Fortes, defensora pública e organizadora do livro). Todo o tempo eu publicava artigos, participava das coletivas, mas nem minha tese, minha dissertação, eu lancei. Estou pensando em fazer agora. Aí a Jeanete dizia: “Sueli, você tem tanto artigo bom! Por que você não faz uma coletânea?” E eu dizia: “Não tenho tempo!” (sorri de novo). Aí ela lançou a ideia.
É um livro que tem um conto sobre as viúvas da seca do sertão, depois tem uma parte da minha dissertação, em que falei sobre o imaginário do semiárido. Por que isso? Porque meu pai foi embora na seca de 70 e fui criada pela minha avó, e eu sentia muita falta. Sabia que meus avós iam morrer e eu sentia muita falta de pai e mãe. E eles só voltaram em 96. Foi muito tempo. Ai, como trabalhava em uma ONG, fui pra Serra da Capivara. Todo mundo queria falar do conflito com a Niède (arqueóloga responsável pela fundação do Parque Nacional Serra da Capivara). Terminei o mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente e fiz um projeto para Direito, para entrar no conflito. E do lado do povo que foi retirado. Minha tese foi sobre a falta de diálogo entre os acadêmicos e as pessoas que conheciam o meio ambiente lá. Só que nessa época eu não trabalhava com filosofia africana e nem do bem-viver. Trabalhei com a filosofia da linguagem, dizendo que o que faltava era eles sentarem e dialogarem. Depois fui amadurecendo isso. Continuo com a mesma perspectiva: em conflito, se você não conversar, você não resolve nunca. Só que agora trabalho com filosofias africanas e o bem-viver, que é dos povos indígenas.
O que isso significa?
Por exemplo, tem uma decisão do Tribunal de Justiça de Roraima: um irmão indígena matou outro. Eles fizeram um longo julgamento. Ele foi expulso da etnia, mas vai ficar participando das reuniões, para ver se ele mudou. E ele vai fazer uma casa e sustentar os sobrinhos. O TJ de Roraima acatou. Fantástico, né? (diz com admiração). O direito ocidental tirou o protagonismo das partes. É um advogado, é um promotor, é um juiz que vai falar disso, e não as partes. Eu sou feminista e participei de uma live sobre a morte de mulheres, ai uma irmã disse: “Sou a favor da pena de morte”. Eu disse: “A pena de morte não vai resolver a saudade que você sente da sua irmã. Você precisa é ser incluída no processo, falar sobre isso”. Essa exclusão, dizer “Ah o direito moderno nunca existiu”… Sempre existiu! As formigas tem regras, as abelhas tem regras, as árvores tem regras, as ovelhas tem regras. Isso é direito. Eu penso que o direito ocidental atrapalhou e muito, porque os povos africanos conversavam sobre o conflito. Eram quatro etapas: resolver tudo numa narrativa só, até o culpado dizer; depois aplicar a pena; depois muita discussão de como aquela comunidade vai permanecer depois do conflito e depois da pena; e, por fim, o compromisso de não repetir aquele conflito. Fantástico, isso! Com todo mundo participando. Tinham os técnicos do direito, mas eles só atuavam para dizer a pena. Estão dizendo que o direito ocidental não serve para nada, não pacifica e eles inventaram a justiça restauradora, que usa o mesmo caminho! Aí eles não dizem que é dos indígenas nem que é da África. Dizem que foram eles que inventaram.
O primeiro texto do seu livro é um conto sobre as viúvas do semiárido. Que relação você faz entre mulher e essa região?
Os homens iam embora e as mulheres ficavam sendo mães. Na verdade, eu nem disse no conto, mas o escrevi porque trabalhava numa ONG financiada pela Alemanha. Aí pediram um texto e ele foi publicado em uma revista lá. Porque os juízes começaram a declarar essas mulheres viúvas. O marido ia embora, às vezes se tornava morador de rua em São Paulo e nunca voltava nem dava notícia. Achei isso fantástico! Porque isso deu muita independência para muitas mulheres. As viúvas da seca eram arrimo de família, criavam os filhos sozinhas, criavam até os netos. A minha comunidade permanece a mesma coisa até hoje.
Quando foi que você se percebeu uma mulher negra?
Sou filha do filho do vaqueiro que se casou com a filha do fazendeiro – e eu fui criada do lado pobre. Meu pai foi embora, minha mãe foi atrás e eu fiquei do lado pobre. Do lado pobre a gente é muito indígena. Do lado que se achava rico, é o lado preto (sorri). Foi um ex-escravo que casou com uma mulher branca. Aí tem essa mistura. Meu avô era bem pretinho. Do lado pobre, a gente não discutia muito isso. Minha avó me chamava de “cabelo de tabefe”, e eu não entendia. Uma vez perguntei pra ela o que era tabefe e ela disse “é cabelo ruim” (sorri). Aí fui namorar um homem branco achando que eu era branca (sorri). A mãe dele disse: “Não quero meu filho namorando com uma negra!”. Aí eu disse: “E eu sou negra?” (sorri).
Quando fui para a UFPI assumi o meu cabelo – quem é preto, lá se finge de branco. Na verdade, meu cabelo está cortado agora porque não consigo pentear, mas eu deixava enorme! Fazia um cocó para cima e eles me odiavam por isso. Achava que eu não estava incomodando ninguém. A Andreia (Marreiro, com quem Sueli escreveu o dossiê sobre Esperança Garcia) me disse: “Professora, você já viu que as pessoas pretas alisam o cabelo, pintam de loiro aqui?”. E eu disse: “Eu também já alisei. Mas depois deixei de alisar”. Aí ela disse: “Pois é por isso que você incomoda tanto”. Teve a homenagem de uma turma que ia se formar. Eles pegaram uma foto minha, me retintaram, eu fiquei pretinha, pretinha, e me deram! (sorri). Aí caiu a ficha.
Você falou em algumas lives (o instagram @olivrodaprofasueli tem realizado lives semanais, todas as quintas) que “a opressão ensina a concorrer e pra gente enfrentar isso precisamos do diálogo, da conversa”. Como fazer isso hoje, em um país tão politicamente polarizado?
Penso que não tem outra forma a não ser a gente recuperar a oralidade. Porque na oralidade, tendo um conflito, a comunidade passava vários meses se reunindo. A nossa cultura não enfrenta o conflito. O CNJ – Conselho Nacional de Justiça – que é o topo, fez uma resolução obrigando todos os tribunais a terem justiça restaurativa. Isso porque as prisões estão cheias e estão cheias de pessoas pretas! Fiz o prefácio de um livro cujo título era “Cadê a juíza?”. As juízas negras dizem que a pergunta que elas mais respondem é essa. Se a gente fizesse uma revolução hoje, matássemos todos os nossos inimigos, a gente repetiria tudo novamente. Como dizia Fanon (Frantz, filósofo francês), a gente é dominado pelo pensamento. Eles chegaram aqui: “Ah, eu respeito a sua cultura”, mas faziam a catequese. A catequese era baseada na filosofia da consciência e não na oralidade. A filosofia da consciência é: você fala e ninguém escuta. Penso que o ser humano vai cair na real e vai desobedecer a cultura eurocêntrica. Porque a gente não vai mudar tudo de uma vez. Mignolo (semiólogo argentino) diz: a gente tem que desobedecer para criar outra perspectiva de vida. E não é rápido. Penso que uma das formas é a gente tematizar as opressões. Gente, isso não é real. Você é inferiorizado por um aspecto genético seu? É terrível isso.
Você disse também na live que “deixou de se doutorar no pensamento da sua avó para aprender tudo sobre o eurocentrismo”…
Foi um horror! (sorri)
Hoje a universidade está mais aberta para essa nova história? A história contada pelos historicamente inferiorizados? As narrativas pessoais?
Quando me formei desses novos entendimentos, eu quis ficar na universidade. Porque era a forma de mudar qualquer coisa. Aí encontrei um amor pela universidade. Porque antes eu ficava trabalhando, mas depois encontrei o prazer de encontrar um estudante chorando e dizer: “Essa não é a parte mais importante da sua vida. A sua vida é que é importante”. Digo que tem a possibilidade hoje, em muitos cursos, de você questioná-lo. Mas não tem essa abertura total não. Vejo muito assédio nas bancas de doutorado e de mestrado. É muito assédio! (frisa). Fui para uma banca de doutorado em março do ano passado – eu já estava com essa visão. Fui a primeira a falar e fiz um parecer belíssimo. Meu deus, na defesa, que está o pai, a mãe, a esposa, os filhos, por que você tem que humilhar? Essa banca durou de duas da tarde às oito da noite. Eu dizia para ele: “Não se preocupe com isso. Oriente sua família para não ouvir essas besteiras” (sorri). Quando fomos nos reunir, disseram: “Tem que aprovar e tem que ser publicado”. E eu perguntei: “Por que vocês falaram tão mal, então?” Não faz sentido!
Como subverter isso? Me parece que hoje tem uma geração chegando mais consciente: estudantes negros e negras, feministas, pessoas trans e que já falam e discutem suas identidades mais abertamente. É um movimento já de mudança?
Penso que essas pessoas podem formar a universidade do futuro. E penso que eles vão mudar essa realidade.
O conflito da Serra da Capivara e o da ferrovia Transnordestina são semelhantes, do ponto de vista da falta de diálogo com as comunidades tradicionais?
Na verdade, o estado é para apoiar um poder econômico. O que acontece na Transnordestina: eles estão fazendo a ferrovia para apoiar o agronegócio. A Serra da Capivara é um excesso de hierarquia da universidade. Quando a Niède Guidon me deu entrevista, vi que ela dizia que quando chegou lá tudo era preservado. Quem era que preservava? Eram as pessoas que moravam lá. Então o que acontece é que ela arruma gente para apoiar a causa dela cometendo genocídio na população local. E o governo não abre mão de participar. Porque, como está na mídia, é mais fácil se juntar a ela do que aos pobres que vivem lá da terra.
Você é a única intelectual do Brasil que teve a ousadia de fazer uma objeção ao parque. Como é sua relação com ela?
Não tem relação.
O projeto do parque teria sido diferente se não fosse uma mulher branca, com formação europeia?
Com certeza. Entrevistei uma pessoa do IBAMA e ela disse: “Aqui tem tudo para ser um parque com as pessoas dentro”. Ela fez um parque nacional enrolando as pessoas que moravam dentro do parque. Elas achavam que iam ser beneficiadas e elas foram expulsas.
A conclusão dessa pesquisa lhe trouxe desafetos?
Nunca fui afetuosa a ela (ri). A gente fez a primeira audiência pública para discutir o povo que foi expulso e fiquei muito feliz. Porque pela primeira vez o estado reconheceu o absurdo que eles fizeram.
Como autora do dossiê sobre Esperança Garcia, como você acompanhou a polêmica sobre a peça apresentada no Theatro 4 de Setembro no mês passado?
Acompanhei e fiz as minhas críticas. Na verdade eles não se apropriaram da Esperança Garcia. Eles disseram cada bizarrice. Fizeram uma coisa horrorosa. Poderiam ter chamado uma mulher negra. Eu botei lá: “Você vai se pintar de preto? Não faz sentido”. Responderam: “a humanidade é uma só”. Quero que seja, mas não é ainda. Esperança Garcia é de um protagonismo muito positivo. Porque ela se baseou nas ordenações filipinas e fez um peticionamento – por isso ela foi reconhecida como advogada sem nenhum voto contra. E eu penso, os europeus descobriram que eles matavam a si mesmos, na Segunda Guerra Mundial. E aí eles inventaram uma justiça de transição. A Segunda Guerra não foi o destroço da escravização negra. Se tem uma justiça de transição, deve ser feita da escravização negra. O racismo continua a escravização negra. E aí a gente entende que essa decisão é uma decisão de estado. Mas enquanto o estado não faz isso, que tal a gente trazer o protagonismo das pessoas negras e revelar? Um menino negro, uma menina negra com certeza vão se sentir muito felizes tendo uma escravizada que fez um peticionamento.
Na entrevista para a Revestrés você disse que, quando pensou em voltar para a política, não considerou mais o PT, por bater de frente com a política desenvolvimentistas e você tinha várias críticas a isso…
Muitas!
Quase 20 anos depois desse governo, como você avalia o estado hoje e como observa o cenário para 2022?
Péssima. Porque se o PT ganhar vai continuar destruindo tudo. Se o PP ganhar vai ser o Bolsonaro no Piauí. Vai ter candidato do PSOL, mas lamentavelmente o povo só pensa em dois.
A política segue lhe interessando?
Olha, tudo que a gente faz é política. Então não vou dizer que um cargo, mas o que eu tô fazendo aqui com você é política. Tudo que todo mundo faz é política. E isso não muda.
Para fechar: qual o tutorial para desobedecer?
Você não pode desobedecer para ser morta, para ser presa. Então você vai calculando onde é que você pode desobedecer. Na escrita você pode desobedecer. “Ah, mas quem vai publicar?”. Tem algumas revistas que publicam. Eu, por exemplo, escrevi um texto dizendo que as formigas formavam comunidades políticas – e teve uma revista que publicou. Então, aquilo que Foucault diz, que a gente vive de disciplina, é verdade. Mas, que tal desobedecer? Por exemplo, você dizer o que você está pensando. É uma forma de reagir. Porque a gente oculta tudo. É uma forma de começar um diálogo. Conversar em casa é uma desobediência. Porque cada um fica no seu quarto. Conversar sobre a novela, ou sobre um filme, é uma desobediência, porque aquilo vem e você incorpora tudo. Você pode, por exemplo, escrever em primeira pessoa – a gente aprendeu que a gente deve escrever em terceira. Isso é revolução? Não, não é revolução. Mas é uma forma de outras pessoas perceberem que você está escrevendo de modo diferente. Ninguém vai desobedecer para encontrar uma arma ali sua na cabeça. Você desobedece quando tem um mínimo de segurança. Penso que a universidade, a escola, são lugares propícios para isso. Porque a gente vive repetindo. Eu vi uma aula de história um dia desses: “descobrimento do Brasil”? Por que que a gente não muda isso? Foi uma invasão! Então penso que a revolução não é, mas, se todo mundo começar a desobedecer essa disciplina, quem sabe o futuro vai ser diferente.
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O livro “Vivências constituintes – sujeitos desconstitucionalizados” é a nova obra de Sueli Rodrigues e reúne textos propositivos, por expressão e/ou inspiração sobre a vida constituinte de sujeitos desconstitucionalizados. O lançamento presencial será dia 23 de novembro no Theatro 4 de Setembro/Clube dos Diários. Para adquiri-lo em pré-venda:
Contato: Jeanete Fortes (86)98112-3561
Agencia 0855
Conta 26130-8
Operaçao 001
Pix: (86)981123561
R$ 50 (Piauí) R$ 60 (outros estados)
2 comentários
Maria Espírito Santo Nunes · 24 de novembro de 2021 às 14:46
Encantada com a riqueza dos textos, o perfil da escritora, narrativas de extrema grandeza humana e coragem, sou filha desse chão, sou parte dessa história. Emocionante. Parabéns!!!
Maria Espírito Santo Nunes · 24 de novembro de 2021 às 14:51
Encantada com as narrativas da escritora Sueli Rodrigues, não é sorte, é conhecimento e criticidade. Sou filha desse chão, parte dessa história emocionante. Parabéns!