quinta-feira, 21 de novembro de 2024

“Não vejo como substituir a educação presencial até os 22 anos”

Renato Janine Ribeiro fala sobre desafios para o desenvolvimento, pandemia e o cenário político para 2022

08 de junho de 2021 Tempo de leitura: 27 minutos

Participaram da entrevista:

Pedro Veras, especialista em Inovação em Políticas Públicas. Criador do The Summit e publisher de O Estado do Piauí
Luana Sena, editora de O Estado do Piauí,  jornalista, mestra e doutoranda em Comunicação e Culturas Digitais
Larissa Maia, professora, publicitária e estrategista de mercado
André Gonçalves, graduando em Ciência Política, escritor, artista visual e editor da revista Revestrés 

 

Na primeira quinta-feira de maio, em uma casa no bairro Aclimação, região central de São Paulo, Renato arruma o celular em um tripé improvisado sobre a mesa. Ele põe os fones de ouvido e aperta o comando do aparelho para iniciar a gravação. “Estou começando um curso de educação”, anuncia sem muita cerimônia. “Meu nome é Renato Janine Ribeiro, fui ministro da educação em 2015 e sou professor de ética e filosofia política”. Em seguida, em frente à câmera, o homem de cabelos grisalhos e olhos reluzentes desmonta o próprio plano de curso que acabara de formular, em 15 aulas. “É essa a diferença entre educação e instrução”, explica. “Em Educação não é o objeto que importa: é o sujeito”. 

Naquela tarde ele falava para seus mais de cinco mil seguidores na rede Instagram – dali a poucos dias o papo, também virtual, seria com a equipe do estreante O Estado do Piauí – projeto que empolgou o ex-ministro desde nosso primeiro contato. “Quero muito conhecer o Delta e visitar Oeiras”, diz, logo que iniciamos a chamada em vídeo. “Vi uma fotografia dessa cidade na revista Realidade, de um burrico puxando um carro de boi, há mais de 30 anos, e nunca esqueci”. 

Janine – que antes de atender nossa chamada quis saber se vestia camisa ou paletó – bota os óculos para enxergar o que há por trás dos entrevistadores em seus espaços instagramáveis. Com ar simpático, brinca de analisar nossas pequenas janelas de mundo nessa realidade remota. Em quase duas horas de conversa, o autor de livros e ensaios como A marca do Leviatã (1978), A universidade e a vida atual (2003) e A sociedade contra o social: o alto custo da vida pública no Brasil (2000) – este, ganhador do Prêmio Jabuti de Literatura em 2001 na categoria Ensaios e Ciências Humanas – reflete sobre educação e pandemia, política, tecnologia e o futuro do ensino à distância. 

 

Luana Sena: Recentemente recebemos a notícia de que um grupo de advogados e professores entrou com um pedido no STF para que o presidente Jair Bolsonaro seja submetido a um exame que avalie suas condições mentais de ocupar a presidência. O senhor é um dos professores que assinam o documento. Esta é uma hipótese na qual realmente acredita?

Renato Janine: Eu acredito, mesmo. A condução do Brasil pelo presidente Bolsonaro tem sido tão esquisita que cabe perguntar se ele realmente tem capacidade cognitiva para exercer esse cargo. Será que ele entende as coisas que acontecem? Um presidente que afirma uma coisa e, depois, afirma o contrário. Afirma que não tem muita importância o número de mortos, depois diz que nunca afirmou isso – sendo que as afirmações dele estavam gravadas, publicadas e tudo o mais. O presidente tem um empenho muito grande em não cumprir os cuidados em relação à Covid que são prescritos pela ciência: o distanciamento físico, o uso de máscara, a higiene constante das mãos, sobretudo. Nada disso o presidente efetuou. Então, fica a pergunta: será que ele está entendendo efetivamente do que se trata? Será que ele capta a gravidade do fenômeno? Quando ele diz “é uma gripezinha” será que não faltam a ele os elementos de conhecimento para saber do que se trata e, portanto, para dirigir um país? Isso quanto à capacidade cognitiva. Ele não tem manifestado empatia com o sofrimento dos que morrem, dos que perderam pessoas próximas. São 440.000 mortos (até então), o que quer dizer que possivelmente 1,5 milhão de familiares dessas pessoas, pensando em uma média, estão chorando, sofrendo a perda de seus mortos. O presidente até hoje não manifestou compaixão, empatia. Será que ele não sente o sofrimento alheio ou será que ele sente só o sofrimento de algumas pessoas? A gente vê que o presidente é muito solidário quando acontece alguma coisa com um policial militar, as profissões armadas, mas com a grande maioria de desarmados no Brasil o presidente não parece manifestar solidariedade. Uma pessoa assim pode conduzir um país? Você deixaria uma empresa ser dirigida por uma pessoa que tivesse dificuldade em entender os dados relativos a ela – portanto, incapacidade cognitiva – e que não tivesse solidariedade com o sofrimento das pessoas que lá trabalham? Se isso dificilmente seria tolerado na liderança de uma empresa, como é que o Brasil está deixando acontecer sem investigar as causas profundas desse comportamento presidencial?

Pedro Veras: O senhor não acha que isso pode ser um método político de atuação do presidente e do grupo político dele? Outros políticos no mundo, e eu vou citar o exemplo do Trump, agiam exatamente dessa maneira: falam uma coisa para agradar determinado segmento da sociedade e, no momento que aquilo desagrada a outro, eles também negam. Este método de agir inclusive está narrado no livro Engenheiros do caos (do jornalista italiano Giuliano Da Empoli). Para além da discussão da capacidade, isso pode ser um método político e que tem demonstrado efetividade no Brasil?

Renato Janine: É muito difícil responder sua pergunta, Pedro. Porque, diante de muitas atitudes, não só do presidente, mas de sua família e de outros ministros, a gente tem dificuldade de saber se é inépcia ou se há um planejamento por trás. Você não sabe! Por exemplo, há toda uma desestruturação de segmentos inteiros do serviço público. A parte toda que cuida do meio ambiente, por exemplo, foi desestruturada. Isso é explícito. O ministro do Meio Ambiente falou em “passar a boiada”. É uma política desastrosa, mas é uma política. Isso que tem sido feito em relação ao meio ambiente parece proposital, não é fortuito, não é tolo. Acho que várias coisas são planejadas. Em alguns setores, o desmantelamento do Estado é planejado. A transferência de dinheiro para grupos que apoiaram o presidente, como os próprios militares ou ruralistas, a não cobrança de multas em relação a quem devasta o meio ambiente, tudo isso é deliberado, não tenho a menor dúvida. O problema é saber: tudo isso gera uma grande política? Isso é um projeto de Brasil ou não? E me parece que aquela declaração que ele fez nos Estados Unidos, logo depois da posse, de que chegava com um grande projeto de destruição… Ele queria destruir, talvez depois pensaria em construir. Mas me parece que destruir realmente está no DNA desse governo.

André Gonçalves: No seu livro A boa política (Companhia das Letras, 2017) você cita Montesquieu, que afirma: “a cada regime político corresponde uma paixão que lhe confere vida e movimento”. A que paixão corresponde esse modo de política do governo Bolsonaro? Onde o senhor a encaixaria nas paixões e nos afetos?

Renato Janine: No ódio. No ressentimento. Na inveja, nas paixões que os filósofos chamam de “paixões negativas”. Você tem as paixões positivas, que são a amizade, o amor, a generosidade, o carinho. E você tem, nas paixões negativas, o medo. Me parece que há um medo muito grande, no bolsonarismo, da castração – não é à toa que o presidente, logo de cara, falou estar preocupado com mil homens que, por ano, são castrados porque não fizeram higiene na região peniana de maneira adequada. O presidente visivelmente estava muito motivado por isso, muito mais do que pelas 400.000 mortes pela Covid. Então, acho que existe um medo da castração. O masculino antigo, que tem medo das mudanças que aconteceram. As declarações dele entre os dois turnos das eleições, quando disse que queria retroceder em 50 anos no que diz respeito aos costumes… O que tínhamos 50 anos atrás? Mulher subordinada a homem, negro subordinado a branco, pobre subordinado a rico e todos os outros tipos de preconceitos – inclusive contra os nordestinos, a quem ele já se referiu de forma muito grosseira. Esse preconceito todo está ligado ao medo de ver que estão surgindo outras pessoas. Que o lugar que era garantido para o homem branco, hétero, não é mais garantido para ele. Esse medo de perder o lugar é uma coisa muito forte. O bolsonarismo está escorado em um grande medo de perda de posições. Desde esse medo simbólico até o medo de perder as posições de mando. E, vamos ser francos, uma mudança desse tipo não é fácil. Nós temos milhares de anos de formação humana hierárquica onde tínhamos homem mandando em mulher, rico mandando em pobre, cor da pele uma mandando em cor da pele outra, uma religião mandando em outra. Você construir uma sociedade justa, igualitária, mais equilibrada, é muito difícil e nós estamos tendo hoje, com o bolsonarismo, uma espécie de grande reação a tudo isso. 

Luana Sena: Desde os primeiros meses do governo Bolsonaro a Educação é um dos setores que mais sofrem ataques. São cortes de verbas, mudança de ministros, e a situação orçamentária ficou tão crítica nesses últimos meses que algumas universidades federais afirmaram que correm o risco de fechar até o final do ano. Que impacto isso tudo vai causar no país? 

Renato Janine: Esse é um ponto crucial agora. Porque nós estamos realmente com cortes substanciais em áreas essenciais para o país e um governo que, ao mesmo tempo, age como quem tem dinheiro sobrando. Ele (Bolsonaro) decide que não vai cobrar as multas dos que detonaram o meio ambiente. Você tem toda uma leniência com crimes ambientais que contrasta com a falta de dinheiro para essas outras áreas que você mencionou, no caso o ensino superior. É um corte de medidas sociais e um cuidado extraordinário que tende a não tirar dinheiro dos mais ricos. Enquanto o governo Temer começou a cortar nas políticas sociais, ele determinou que a Caixa Econômica Federal começasse a financiar imóveis de três milhões de reais, que não eram antes financiáveis pela Caixa, um banco com finalidade social. Então, na hora que se faz uma medida desse tipo, de financiamento para ricos, é sinal de que não está faltando dinheiro, como dizem – o que está ocorrendo é uma transferência de renda muito grande dos mais pobres para os mais ricos. Se você olhar o quanto os bancos lucraram em plena pandemia e levar em conta que metade da população brasileira está em situação de insegurança alimentar, que é um eufemismo para a fome, é terrível.

Pedro Veras: O que você considera que possa ser o desafio de pessoas que são de “minorias” de direito? Como fazer pressão com eficiência para que essa situação mude? Tivemos dois anos de (governo) Temer e dois anos de (governo) Bolsonaro, e todas as conquistas do governo Lula, um líder operário, foram derretidas. Como você acha que isso pode virar conquista real e sólida de uma sociedade? 

Renato Janine: Eu vou tentar responder, não sei se à altura, porque você colocou uma questão tão difícil, tão chave em tudo. Vamos começar um pouco pelo operário, Lula. O Lula só conseguiu chegar ao governo e fazer o que ele fez porque o Lula é capaz de fazer alianças. Se tivesse adotado uma política radical – quer na campanha eleitoral dos anos seguintes, quer no governo dele – ele não teria sido eleito ou não teria ficado no cargo. Teria sido ejetado rapidamente. Ejetado não por ter adotado uma política radical, mas por falta de habilidade política, além da agressividade contra ele ter sido gigantesca, injusta, conspiratória. Lula conseguiu, em momento muito específico, em que o Brasil estava com mais renda, e graças à capacidade dele de conversa, de diálogo, tudo o que a gente viu e que, em certos casos, foi fabuloso. Quer dizer, se você soma Bolsa Família, Luz para Todos, programas educacionais, você tem uma mudança social enorme, que no Nordeste é muito visível, somando também a irrigação, a transposição do São Francisco, muita coisa incluída nisso. Agora, o que faltou? O que nós chamamos de educação política. Eu penso que faltou um pouco, no discurso do PT, a ênfase nas políticas públicas. Não é pela minha dedicação individual, nem é a intervenção divina: são políticas em que seres humanos se juntam para defender determinado projeto, e conseguem. E para conseguir isso eles precisam de que? Precisam se juntar, formar entidades, ou permanências, tipo sindicatos, associações ou movimentos temporários, em que as pessoas se aliam e fazem pressão sobre o poder público, exigem que isso seja concedido. Os ricos conseguem fazer a pressão com muita facilidade. É o que eu chamo de terceiro turno das eleições. Você tem os dois turnos mas, durante os quatro anos, os mais ricos têm um papel extraordinário na definição dos caminhos que o Brasil vai tomar. É preciso muita força, por parte dos mais pobres, para eles conseguirem se contrapor às forças dos mais ricos. Mas é possível. Eu gosto de lembrar o que foi feito nos Estados Unidos contra a segregação racial nos ônibus. Uma senhora negra se senta em um banco reservado a brancos no ônibus e tentam colocá-la para fora (refere-se a gesto de Rosa Parks, ativista negra, na cidade de Montgomery, Alabama, em 1955). E ela se recusa, e aí os negros fazem um boicote aos ônibus que durou mais de um ano. Mais de um ano! Os negros passaram mais de um ano indo a pé para o local de trabalho. Quebraram as companhias de ônibus, que acabaram cedendo. Então é uma luta, uma luta difícil. Mas a gente tem sinais, histórias de vitórias no mundo todo. Sem mobilização dos de baixo, sem mobilizar os trabalhadores, não vai acontecer nada socialmente justo. Não vai ser por doação. Mesmo esses movimentos em prol da melhor educação, se não houver pressão constante dos pobres e dos trabalhadores, podem desviar-se. Se você facilita, esses movimentos vão falar essencialmente em tecnologia para a educação. É muito importante, mas eles vão esquecer o professor. 

Luana Sena: Vou aproveitar esse gancho para falar dos impactos do ensino à distância que a gente está vivendo nesse momento. Além da crise sanitária global, veio também uma crise na educação básica, das crianças, que estão em casa e estão tendo que ser alfabetizadas através desse ensino remoto. Você considera o EaD uma solução ou mais um novo problema que a gente vai ter de enfrentar?

Renato Janine: Nós temos que distinguir que o que estamos tendo é ensino remoto emergencial, não é educação à distância. Porque foi uma coisa que teve de ser improvisada, e foi mal improvisada. Algo que eu defendo desde o início, desde que começou a pandemia, era pegar o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações – que é composto basicamente por 1% da conta de celulares que cada um de nós paga – e instalar rapidamente antenas que permitam haver banda larga e forneçam pacotes de dados aos bairros mais pobres. Um governo decente teria feito o que? Teria colocado o FUST para fazer antenas e convencido as empresas a transferirem os 4G´s não utilizados  – dos nossos celulares – para crianças e adolescentes que moram nas periferias, nos lugares em que não tem dinheiro para isso. Não foi feito porque o governo é contra. Bolsonaro vetou um projeto de lei do deputado Idilvan Alencar, do Ceará, que foi presidente do FNDE na minha gestão no Ministério, que propunha exatamente esse uso do dinheiro público. É um dinheiro para telecomunicações e Bolsonaro vetou isso; esse é o primeiro ponto. Segundo ponto: acho que a educação à distância é algo bastante sofisticado e que tem de ser bem feito. Não basta você gravar as pessoas, não basta você gravar uma aula. Entendo que é uma coisa que pode ser muito atrativa. Mas também que tem que haver um recorte muito claro entre a faixa em que você precisa da educação presencial e a faixa que você não precisa mais tanto dela. Educação presencial não vejo como substituir até, em termos brasileiros, uns 22 anos.  Porque é um período em que a educação tem um papel que não é de transmissão de conhecimento, nem apenas formação de competências: é abrir para a vida. Cada um de nós nasceu em uma família, em uma classe social, num ambiente que tem determinada fé religiosa, certos valores, certa riqueza ou pobreza, certos hábitos alimentares e outros. Quer dizer, tudo o que você é tem gente que não é. A educação é essencialmente aprender a existência desse outro mundo. Aprender que o mundo é muito mais amplo e que nós nascemos na particularidade, e temos que aprender com outras particularidades. Todo esse conhecimento que a escola pode proporcionar é presencial. Penso que, a partir de certo momento, a coisa muda – depois que você aprendeu a se relacionar com o outro. Aprendeu que o outro é limite, que o outro é oportunidade. Com o outro você cresce. Mas, com o outro você também tem que ter limite, tem que respeitar. Eu priorizaria a educação à distância para quem não a fez na chamada idade certa. Outro uso da educação à distância é quando não se tem um curso bom ao alcance, sobretudo pessoas do interior – e eu suponho que no Piauí aconteça a mesma coisa que a gente vê no interior de São Paulo. Ônibus circulando à noitinha, levando gente de uma cidade para a outra para assistir aula de faculdade, 20, 30 quilômetros de distância. Às vezes isso pode ser suprido por um bom curso à distância. A educação à distância cresceu muito no governo Lula, mas acho que houve uma tendência a fazer com que as universidades federais oferecessem o seu curso à distância. Eu pretendia substituir isso por um ou poucos cursos à distância para o público de todas as 69 universidades federais. Por exemplo, o curso de História: pegar os melhores historiadores do Brasil e dar um curso excelente. Não era pra ser cada universidade vai dando o seu – e aí vão ter melhores e outros vão ser piores. Era pra ser um curso excelente e, na avaliação, seria exigente. Claro que, ainda mais sendo gratuito, ia causar muito problema nos cursos pagos de má qualidade – e tem muito. 

Pedro Veras: As transformações no mundo ocorrem de forma cada vez mais rápida, e funções e atividades são extintas e substituídas por máquinas, por inteligência artificial. Qual é o desafio para que a educação tenha um conteúdo capaz de atender aos novos tempos e de, por exemplo, colocar um estado como o Piauí, um dos mais pobres do Brasil, numa roda de desenvolvimento sólido?

Renato Janine: Vamos começar pelo fim: acho que a educação somada à internet constitui um conjunto de elementos que permite vencer a pobreza com bastante eficácia. Ou, apesar da dificuldade inegável que há nisso, com eficácia que antes não havia. Porque, hoje, nem a matéria prima nem a localização geográfica são fatores essenciais para a prosperidade. Recentemente, com a pandemia, muita gente deixou Nova York e foi para o interior dos Estados Unidos, para lugares em que os imóveis são mais baratos, a temperatura é mais decente, a vida ao ar livre é mais viável. Isso provavelmente não vai ter muita volta. Então temos hoje uma chance muito grande para lugares que foram historicamente discriminados vencerem isso, desde que, claro, tenham uma boa banda larga. Mais do que isso: tenham um conteúdo. Um conteúdo a transmitir nisso tudo, aí tem muito a ver com educação. Por exemplo, aos 16 anos você começa a votar. Como um aluno do ensino médio não recebe uma educação política? Que não deve ser doutrinação, mas deve ser: o que é direita e esquerda? O que é socialismo e o que é liberalismo? O que é o poder do presidente, poder do governador e poder do prefeito? O que o Congresso faz? O que são políticas públicas? Você não ensinar isso aos alunos do final do fundamental ou início do ensino médio é ruim. Aos 18 anos você já está com um princípio formado no ensino médio, pode assinar contratos, inclusive casamento. E essa jovem pessoa aprendeu sobre isso? Teve aulas sobre contrato? Teve aulas sobre amor? A gente tem uma ideia de que as coisas essenciais da vida você não ensina, acho que isso também vale para a educação sexual. Eu acho até mais fácil educação sexual do que educação para o amor. O amor é difícil, é difícil você entender em que consiste, o que é, como se reage a uma perda, como se reage às dificuldades e também com as alegrias dele. Penso que a educação tem que estar ligada a isso. Quando as pessoas falam “nós temos que formar para as competências desse novo mundo, para um ambiente de informática”: sem a menor dúvida. Mas não esquecendo que a informática, em boa parte, é um instrumento. Por isso eu frisei o amor. O amor está muito no sentido da vida das pessoas, mais vinculado que a informática, entende? Então temos que aprender tudo isso, como aprender outras coisas também. 

Larissa Maia: Como a gente consegue equilibrar necessidades sociais, econômicas, com os desejos e interesses subjetivos das pessoas? Você conhece alguma prática disso, principalmente na educação pública, com resultados positivos?

Renato Janine: Sinceramente, não. Tenho a convicção de que nós temos que crescer em duas áreas: cultura – talvez juntando com o entretenimento, mas entretenimento de qualidade e atividade física não competitiva – e mercado, assim, total. Quer dizer, minha professora de pilates não tem falta de aluno. Não existe crise para ela, sabe? Pessoal que lida com fisioterapia, educação física, não tem crise, estão em pleno crescimento. E várias profissões de saúde idem. Cultura precisa as pessoas conhecerem melhor, mas a expansão disso, depois do fim da ditadura, é uma coisa belíssima. Você vê como as secretarias municipais estaduais, o SESC e outras entidades foram espalhando atividades de cultura, muitas vezes gratuitas, pelo Brasil. Nós vamos ter que pensar no lazer inteligente. Creio que chega uma hora que a produção de alimentos, a produção de bens materiais, bate em uma espécie de teto, sabe? Pode ir muito longe, mas bate no teto e vai ter uma hora que a gente vai estar muito focado na formação do ser humano. A formação do ser humano é mente sã e corpo são. É cultura e saúde. Saúde e atividade física não competitiva.

André Gonçalves: Um assunto que ficou muito aceso agora nesses tempos de pandemia foi essa suposta dicotomia entre vida e economia. A partir desse debate estranho, que tipo de conceito de ética, de sentido de humanidade a gente pode desenvolver quando isso passar? Noções como utilitarismo, prioridades do humano sobre a economia, sobre o que é economicamente viável ou humanamente possível: o que a gente pode fazer nascer ou renascer a partir disso?

Renato Janine: Eu acho que, no momento dessa crise, isso é um falso debate. Porque justamente a tentativa do presidente, que tanto enfatizou sobre descuidar da vida para que a economia fosse prioridade, acabou trazendo problemas econômicos. Morreu muito mais gente no Brasil do que teria morrido se tivéssemos feito lockdown nos lugares necessários, como foi por exemplo em Araraquara, no interior de São Paulo. O sistema de saúde estava entrando em colapso e o lockdown conseguiu salvar o sistema. Poderia ter sido muito mais efetivo, naquele momento, aquilo que parece ser, a curto prazo, oneroso para a economia. Da mesma forma que gente com visão econômica muito tosca pensa que a destruição do meio ambiente é rica para economia. Essas pessoas esquecem que, desse jeito, só vão produzir coisas que vão ser vendidas muito baratas. Não vão conseguir produtos com inteligência embutida se ficarem colocando fogo na mata! Acho que nesse ponto os dois convergem. Acho uma lástima que muita gente da área empresarial não tenha aprendido nada com isso. Eu estava lendo “20 previsões do The Economist” e não achei nenhuma, mas estão lá e parecem inteligentes. Dizem que as pessoas vão viajar muito virtualmente – eu não sei, acho que assim que terminar essa loucura as pessoas vão estar loucas para viajar fisicamente, não virtualmente. Dizem que a educação online vai crescer demais e também aumentar muito o teletrabalho – só que  eles não dizem como vão enfrentar a queda de renda fruto das desocupações de escritórios, dos desempregos de trabalhos presenciais e etc. Vai ter que haver uma conversão de escritório em apartamento. E o que isso vai significar? Qual o custo disso? Vai dar lucro ou vai dar prejuízo? Haverá ganhadores e perdedores, porque o que o poder público vai fazer é tentar arbitrar isso um pouco. Para que o ganhador, de alguma maneira, subsidie o perdedor. Senão você pode ter uma situação muito aleatória, muito lotérica, de alguém sair muito prejudicado por questões puramente fortuitas. 

Pedro Veras: O que o senhor espera de 2022 no cenário das eleições? Vê espaço para o crescimento de uma liderança nordestina que possa chegar à presidência da República, ou que possa, pelo menos, existir uma candidatura viável em 2022?

Renato Janine: Vocês escolheram perguntas difíceis, hein? Que coisa! (risos). Eu creio que a restituição dos direitos políticos ao presidente Lula fez o país crescer. Quer dizer, de repente nós saímos do cercadinho de criança e começamos a ter conversas de adulto, sabe? Agora, o que nós temos? Temos uma grande liderança que é o Lula. O problema é que não tivemos renovação de lideranças no Brasil. O PT, em 40 anos, continua tendo como líder o mesmo líder do começo. É culpa do Lula? Não, não é. O Lula tentou o quanto pode conseguir novos nomes, procurou impelir o Haddad com razoável sucesso – não um sucesso retumbante, mas um razoável sucesso. Impeliu Dilma, com menos sucesso, porque Dilma não tinha a paixão política que ele, Lula, tem. Quer dizer, nem o Haddad tem o mesmo nível. Alguns governadores no Nordeste têm, petistas ou não. O PSDB conseguiu hoje não ter um líder nacional. O PT tem um grande líder nacional, que é o Lula, e isso deixa tudo mais ou menos solitário, tudo mais ou menos sem alcance. Dos governadores do Nordeste ou ex-governadores, eu não teria a menor dúvida de dizer que Jaques Wagner é quem tem mais perfil de presidenciável – e ele teria sido o candidato em 2018, se quisesse. Ciro Gomes poderia ser um nome do Nordeste também, mas ele tem tido um caminho que o colocou em choque com muitos possíveis eleitores e simpatizantes. Então não é uma questão do Nordeste, é uma questão do Brasil. O Brasil está sem nomes novos e esse é um ponto muito grave, porque, quando você tem como principal líder, prometendo alguma coisa, um homem de quase 80 anos, que é o Lula, isso fica complicado. Como renovar os quadros? Lula tentou renovações mas, de qualquer forma, renovar mesmo não é alguém que está lá ficar dando a mão para os outros subirem. Lula, e antes dele Fernando Henrique, tinham perfis de presidente, porque os dois eram capazes de entender a coisa técnica que era dita e transformar isso em discurso político capaz de convencer seus apoiadores. O Serra e a Dilma  têm mais o perfil do técnico, pessoas que sabem administrar. Tem vários governadores que funcionam bem como técnicos. O Brasil é muito complicado se você tentar dirigir com cabeça de técnico, sabe? Com cabeça de planilha. Eu calculo no meu livro A pátria educadora em colapso 200 lideranças com quem o presidente do Brasil tem que estar bem: são os presidentes da Câmara, do Senado, dos principais tribunais, das agências reguladoras, os próprios ministros, dirigentes das comissões da Câmara, os grandes empresários; talvez, dependendo do perfil do presidente, líderes sindicais e espirituais. Saindo dessa calamidade, nós vamos precisar de alguém com muita capacidade disso – o que me deixa preocupado, porque o único nome que vejo no Brasil, hoje, é o Lula. Não vejo ninguém com essa capacidade de reagregar o país. Você pode ter presidentes bons – pior do que o atual é difícil – mas você precisaria ter um presidente que realmente tenha isso que chamo de liderança, essa capacidade de falar com 100, 200 grandes formadores de opinião e, mais do que isso, falar para o povo. Convencer o povo.

Luana Sena: O que o senhor anda lendo? E, quando isso tudo passar, qual é a primeira aglomeração que pretende ir? 

Renato Janine: Neste momento decidi fazer uma coisa que nunca fiz: eu nunca li os clássicos. Sou deficiente na formação dos clássicos. Daí peguei a “Ilíada”, do Homero, e comecei a ler ontem à noite. Já tinha tentado uma ou duas vezes, em inglês. Tem uma tradução de um escritor maranhense chamado Carlos Alberto Nunes, então comecei a ler. Não é fácil, é uma tradução em versos com muita coisa arcaica no meio, com muita inversão, mas é bonita. E a aglomeração que eu quero participar é de um grande “Fora Bolsonaro!”.

quinta-feira, 21 de novembro de 2024
Categorias: Entrevista

Luana Sena

Jornalista, mestra e doutoranda em comunicação na Universidade Federal da Bahia.

1 comentário

Wilame Gomes de Abreu · 9 de junho de 2021 às 13:59

#EstamosJuntos #ForaBolsonaro #DemocraciaParticipativa

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