sábado, 11 de maio de 2024

O rei do cerrado

Alessandro de Lima comprovou que o pequi - bem aqui, do nosso quintal - possui rico valor nutritivo no qual o mundo todo está de olho

19 de outubro de 2021

Para um cientista, qualquer quintal é biblioteca. Cada planta, cada microrganismo vivo, é um capítulo que escreve um pouco da história de como chegamos até aqui. O cerrado, um dos ecossistemas mais ricos do mundo do ponto de vista biológico, é hoje também um dos mais ameaçados. E foi por frutos produzidos nele que o cientista piauiense Alessandro de Lima, se interessou. 

Próximo a Santa Rosa, vila onde nasceu a 50 quilômetros do município de Oeiras, a primeira capital do Piauí, há uma região conhecida como Serra dos Patos – por lá Alessandro criou-se, tomando banho de rio com os irmãos e amigos e vendo o pai, agricultor, carregar baldes do fruto extraído dos pequizeiros. “Minha mãe, as vizinhas, todo mundo dava óleo de pequi para as crianças”, relembra o pesquisador. Na época ele nem sonhava que anos mais tarde estaria dentro de um laboratório conhecendo o pequi como a palma da própria mão.

Colação de grau em Nutrição, na UFPE em 1999.

Era sonhar muito alto para o caçula de dona Claudemira e seu Zé Bento. O máximo que cruzou a estrada foi para ir a Oeiras, estudar além da 8ª série. Alessandro foi da primeira turma da Escola Paulo Freire, fundada por docentes que chegaram à cidade para instalar a primeira Escola Agrícola da cidade. Ao concluir o Ensino Médio, um convite do professor Raimundo Nonato Luz fez a turma de 13 alunos balançar: todos iam hospedar-se com ele em Recife para prestar o vestibular na Universidade Federal do Pernambuco. Alessandro, que nunca tinha ido sequer a Teresina, virou o ano de 1995 tomando o primeiro banho de mar na praia de Boa Viagem. 

Ele fez a prova para o curso de Nutrição. “Tinha lido no final do livro de biologia, algo como ‘as profissões do futuro’”. Não foi propriamente um percurso programado mas, quase como um balé sincronizado, as coisas foram acontecendo para que Alessandro vestisse uma bata branca e nunca mais interessar-se por tirá-la. Tal qual as frutas do cerrado, ele procurava estratégias para sobreviver e se adaptar a condições adversas – o ambiente, o clima, a falta de dinheiro. “Eu precisava me manter, e a bolsa para iniciação científica foi uma ótima oportunidade”, relembra. Começou ajudando a pesquisa daqueles que viraram seus grandes mentores no caminho entre mestrado e doutorado. “Pessoas iluminadas sempre cruzaram a minha vida”. 

Alessandro já concluiu o mestrado como professor substituto no departamento de Nutrição da UFPE, onde fazia sua pesquisa de mestrado. Quando foi desenvolver o seu projeto para o doutorado, aquele que seria seu futuro orientador estava interessado em olhar para onde a ciência começava, aos poucos, a lançar luz – era início dos anos 2.000 e poucos estudos vinham sendo realizados com o intuito de caracterizar o valor nutricional da infinidade de frutos do cerrado brasileiro. Estima-se que sete mil espécies componham a diversidade vegetal do segundo bioma brasileiro em árvores frutíferas – a maior parte delas,  nunca estudada. 

Santa Rosa do Piauí, vila rural onde nasceu (Arquivo pessoal).

O pequizeiro é popularmente conhecido como “o rei do cerrado”. Seu valor alimentício é parte do saber empírico de famílias rurais – a polpa extraída vira óleo, a folha vira chá, a madeira, resistente e durável, serve para a fabricação de barcos, estacas, mourões e piões. Pergunte a qualquer pessoa com raízes nordestinas: por aqui, pequi se come com farinha, misturado com galinha, no arroz e no feijão. 

Dentro do laboratório, Alessandro comprovou aquilo que o saber popular talvez supunha há séculos: as pesquisas mostraram que um composto presente na coroa amarela do pequi se converte em vitamina A, quando consumido por nós. “No nosso organismo a vitamina A é mais associada a elevação da nossa imunidade e a prevenção de doenças”, explica o cientista. 

Alessandro estudou a caracterização nutricional do pequi, identificando novos compostos – nas pesquisas em laboratório, avaliou a atividade antioxidante do fruto e da amêndoa do pequi. Além da descoberta sobre o valor nutricional do pequi, o pioneirismo do seu método de análise – que, até então, ainda não era desenvolvido no Brasil – chamou a atenção do mundo. Os trabalhos decorrentes da sua tese (Caracterização química, avaliação da atividade antioxidante in vitro e in vivo, e identificação dos compostos fenólicos presentes no Pequi (Caryocar brasiliense, Camb), clique aqui para ler) lhe renderam uma classificação no AD Scientific – agora ele figura entre os 10 mil cientistas dos países membros do Brics que mais contribuíram com o desenvolvimento da ciência no mundo. 

Na infância, com a irmã e os amigos (Arquivo pessoal).

O index classifica a produtividade total dos últimos cinco anos de pesquisadores considerados relevantes pelo número de citações em artigos, revistas e outros trabalhos acadêmicos que vieram depois: somente um dos estudos de Alessandro teve mais de 15 mil acessos. “Na época (a pesquisa foi publicada em 2008), acho que consegui trazer metodologias muito recentes”, avalia. “Muitas pessoas que acessam a tese buscam a forma como consegui fazer aquela análise e chegar a tais resultados”. 

A modéstia é parte da timidez de um professor e pesquisador apaixonado pelo que faz. São mais de 20 anos em laboratório e sala de aula e, para ele, é uma das melhores formas de aliviar o estresse e esquecer do mundo lá fora. Além disso, é das descobertas que saem dali, acredita, que se desvela a possibilidade do crescimento econômico de uma comunidade, região ou país. Com os recentes cortes do governo federal em recursos para pesquisa científica no Brasil, acredita, ficaremos reféns daquilo que é pesquisado fora – é como dar alguns passos para trás, voltando a importar conhecimento. “Cada país só produz o que é útil para aquela comunidade”, avalia Alessandro. “Eu sou um exemplo cristalino de que a mudança vem graças à ciência”. 

Luana Sena: Como e por que se tornou professor?

Alessandro de Lima: Eu sou piauiense, de uma cidadezinha chamada Santa Rosa do Piauí. Sou de uma família carente, na época Santa Rosa era só uma vila rural. Eu queria crescer, conhecer um mundo mais urbano. Quando entrei para o curso, na UFPE, logo no segundo período, abriu a seleção para um edital de PIBIC (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica). O professor José Almiro da Paixão foi meu grande mentor intelectual. Foi uma conquista muito grande. Ele me introduziu ao mundo da ciência. Eu estudava na federal e nas horas vagas ia para o laboratório ajudá-lo nas pesquisas – ele fazia doutorado com análise de vitaminas e leite. Até a finalização do curso eu fui bolsista de iniciação científica. Durante a graduação, nós pesquisávamos e publicávamos, ele me fazia apresentar quinzenalmente um artigo em inglês –  isso me obrigou a ler em outra língua, porque eu tinha uma deficiência muito grande. Por apresentar seminários, por ser meu primeiro contato com muitos professores acabei criando uma admiração muito grande. Fiz uma graduação muito intensa, eu ficava o dia todo lá na UFPE – quando não estava em aula, estava em laboratório ou ajudando ele na preparação de aula. Quando terminei a graduação, em dezembro, já fiz a seleção do mestrado também na UFPE e passei. Estava concluindo as disciplinas do primeiro ano no mestrado e abriu um concurso para professor substituto de Nutrição lá na UFPE. Era apenas uma vaga. Eu fiz e fui aprovado. Fiz o mestrado já dando aula como professor substituto do departamento de Nutrição. Na verdade foi a necessidade de trabalhar, mas eu já tinha vontade e interesse pela docência. 

Você não tinha nenhum parente lá? Como foi essa chegada em Recife?

Não tinha. Fui para Recife porque, quando estava no 3º ano em Oeiras, o professor Raimundo Nonato Luz, fundador da escola Paulo Freire,  passou em um concurso do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) em Recife. Ele convidou toda a nossa turma do 3º ano para, ao invés de fazer uma festa de formatura, ir para a capital pernambucana fazer o vestibular. Ele alugou uma casa e comprou colchonetes pra gente, e nós economizamos o dinheiro que seria para a nossa formatura. Fomos de ônibus, da companhia Princesa do Agreste! (sorri) Conheci o mar em Recife. Chegamos a tarde e ele levou aquele monte de interiorano para conhecer a praia. De um grupo de 13 alunos, passamos apenas dois – eu e a Luísa. Como ele levou a gente para fazer o vestibular, acho que se sentiu na obrigação de nos convidar para morar com ele. Ele era um ser humano ímpar. Eu e Luísa não tínhamos como ficar lá e ele disse que podíamos morar com ele por um período – esse período foi até terminar o curso. Ele foi um pai para nós. Eu tinha 18 anos, vindo de uma vila rural, na época nem tinha internet. E de repente fui estudar Nutrição, um curso que eu li no final do livro de biologia: “profissões do futuro”, com aquelas dicas e tudo. Tudo era uma novidade para mim em Recife: eu não sabia pegar nem ônibus. Logo que cheguei, abriu aquele censo de 1996 no IBGE e eu fiz o teste seletivo para trabalhar como recenseador e assim me virei por oito meses. Logo em seguida abriu a seleção para a bolsa de PIBIC e eu me candidatei. Foi fazendo pesquisa que me sustentei até o fim do curso. 

Já passava pela sua cabeça ser um cientista?

Quando entrei na graduação, não. Estudar era um impulso de vida, mas eu não tinha noção nem conhecia a complexidade do que era ser um cientista. Quando comecei a fazer pesquisa com o professor José Almiro, aí sim passei a admirar a forma como ele conduzia os trabalhos. Porque ele sempre foi um professor e pesquisador, e eu o segui como exemplo. A vida sempre fez com que eu me envolvesse com pesquisa. Confesso que quando fiz iniciação científica, era mais pelo sustento. Eu ajudava o professor, gostava de fazer as atividades, mas achava muito difícil trabalhar em laboratório, sem nenhuma experiência. Comecei mesmo na pia, “vamos aprender a lavar a vidraria”, ele dizia. Mas eu sempre fui muito curioso. Depois eu fui ajudando colegas e isso foi fazendo parte da minha rotina diária, desde os 19 anos, eu nunca mais saí do laboratório de pesquisa. Fui me apaixonando. É muito bom você ter dúvidas e ir pro laboratório – quando você está estressado, ou você se concentra no experimento ou ele não vai dar certo. Você tira da sua mente qualquer outro pensamento. Se eu preciso fazer uma análise de proteínas e preciso estar lá por três, quatro horas, ligado a um aparelho, agitando, fazendo alguma técnica, é uma forma de me concentrar naquela atividade. Fui me envolvendo, aprendendo cada vez mais. 

 

Preparando pequi para pesquisa, USP em 2004 (Arquivo pessoal).

Como era para a sua família observar, de longe, esse seu percurso?

A minha mãe é a minha maior admiradora. Sou o caçula de quatro irmãos. Ela nunca quis que eu saísse, mas também nunca proibiu. Minha mãe e meu pai são analfabetos – ele, trabalhador rural e ela, dona de casa. Eles não tinham noção da importância, mas sabiam que era um desejo meu, o de estudar. Tenho uma irmã que fez magistério em Oeiras, mas meus outros irmãos fizeram só até a oitava série. Minha mãe se sente muito orgulhosa. Meu pai faleceu há três anos, mas ele também sentia muito orgulho, até porque, de certa forma, por um tempo eu fui a base inclusive financeira da família. Todos eles continuam lá em Santa Rosa. 

Sua pesquisa que ganhou destaque internacional é sua tese de doutorado, correto?

Isso. É um índice científico. Dois grandes grupos de pesquisa criaram um ranking mundial dos pesquisadores que eles dizem mais produtivos – ou seja, aqueles cujas pesquisas são mais citadas no mundo. Eu sou professor do Instituto Federal do Piauí (IFPI) há 20 anos. Tenho 54 artigos publicados em revistas indexadas. Desses 54 artigos, de longe, o que mais repercutiu para que eu conseguisse esse prêmio foi a minha tese de doutorado – porque a tese gerou o artigo. Esse índice de citações revelou que eu tenho 23 mil citações. Desses, praticamente 12 mil foram só sobre o pequi. Quando eu fiz essa pesquisa, em 2004, foi um trabalho pioneiro. Nós identificamos dois compostos antioxidantes, associados à prevenção do envelhecimento precoce e doenças crônicas, os carotenóides e polifenóis, que até então não tinham sido estudados. É por isso que até hoje, 2021, ele ainda é citado: porque foi um trabalho base. Esses compostos deram visibilidade e uma propriedade que a gente chama de funcional ao pequi. 

E por que o interesse em estudar o pequi?

A minha linha de pesquisa é só alimentos regionais. Trabalho com alimentos típicos da caatinga ou do cerrado – típicos do Piauí. O pequi foi meu grande trabalho científico porque na época, quando fiz a seleção de doutorado para a Universidade de São Paulo, o meu orientador queria que eu trouxesse algo típico consumido na minha comunidade, um fruto sem grandes estudos científicos específicos, sem grande comercialização. Lá em Santa Rosa tem uma região chamada Serra dos Patos. Na época de dezembro a março dá muito pequi. Meu pai ia colher pequi e a gente consumia muito, como toda a comunidade. O óleo de pequi é muito consumido em comunidades tradicionais – crianças tomam para prevenir infecções, melhorar o crescimento e a imunidade. Mas era apenas um conhecimento popular. As pesquisas comprovaram que o composto amarelo presente na coroa do pequi, quando consumido por nós, se converte em vitamina A. A vitamina A, é a vitamina do nosso organismo mais associada a elevação da nossa imunidade, a prevenção de doenças. Na época em que eu era criança, nos anos 80, a maior causa da mortalidade infantil eram infecções, causadas pelas condições sanitárias que eram mínimas. Então um alimento associado a isso era muito utilizado pelas mães. Então eu já conhecia e comia muito pequi e levei a ideia de estudar a caracterização nutricional desse fruto e a possível identificação de novos compostos. Foi um trabalho pioneiro e de profundidade sobre o pequi. A partir dele surgiu um boom de outros trabalhos. Tem um pessoal da Universidade de Brasília que já criou cápsulas de pequi como antioxidante para pessoas que gostam de uma alimentação saudável. 

Essa é a razão do seu trabalho ter chamado tanta atenção de pesquisadores da China e da Rússia, por exemplo? O mundo todo está de olho nessas propriedades?

Com certeza tem a ver com o potencial nutritivo do pequi. É um alimento que apresenta uma alta potencialidade nutricional. Mas, na época, além dos dados, acho que consegui trazer também metodologias que eram muito recentes. Além da propriedade nutricional, as formas de identificar esses compostos – muitas pessoas que acessam a tese buscam a forma de fazer aquela análise. No estudo identificamos que ele tinha carotenóides e polifenóis, mas qual era o composto? Eu não consegui isolá-lo para pesquisa aqui no Brasil – não havia a infraestrutura necessária no laboratório, e olha que eu estava no centro da pesquisa científica do país, que é São Paulo. Nem havia pesquisas anteriores aplicando tal método. E foi aí que em 2007 eu consegui uma bolsa de doutorado sanduíche e fui para a Universidade de Sevilha, na Espanha. Fiquei lá por um semestre e conseguimos identificar os compostos. Montei lá no laboratório e trouxe também aqui para o IFPI. Quando a gente desenvolve uma técnica nova, ler um artigo, apenas, não dá condições de que conseguirá reproduzir. É como uma receita – se você apenas ler na internet, não tem garantia de que vai sair igual. E como era uma pesquisa de doutorado, eu precisava de bastante precisão. No laboratório europeu onde trabalhei eles aplicam essa análise de compostos em vinhos. Eu só peguei e reproduzi para o pequi.

No laboratório da USP (Arquivo pessoal).

A partir das suas descobertas, o que pode ser desenvolvido para o nosso Estado do ponto de vista econômico, por exemplo? 

O pequi não é comercializado. É um fruto que nasce e vai se propagando, é típico do extrativismo. Sob o ponto de vista do meio ambiente, é muito interessante agregar valor a esse produto porque é explorar algo que já é produzido. Já existem algumas startups desenvolvendo isso. Desenvolvi recentemente com uma orientanda minha, a Edna, um leite condensado de côco babaçu. É um conhecimento tradicional da avó dela, que passou para mãe e ela trouxe para estudarmos. Nós padronizamos, montamos a metodologia e desenvolvemos o produto – e já patenteamos. É uma forma de proteger, patenteando o método e o produto, através do INPI. Qualquer outra empresa que quiser desenvolver tem que ter a nossa autorização, pagar os royalties. Ao invés de publicar e divulgar, como fizemos com o pequi, o leite condensado optamos por proteger porque a aluna quer abrir uma empresa e explorar economicamente aquilo. Um grande empecilho para a comercialização do pequi é a extração da polpa – tem centenas de espinhos. Mas na região de Mato Grosso já existem máquinas de despolpar pequi. Em São Paulo você já encontra polpa de pequi conservada. O pequi ainda não é plantado, mas já é colhido, extraído e vendido pelas comunidades. Hoje ele não é um produto largamente consumido, mas já tem produtos à base de pequi, se você buscar.

Sua pesquisa contribui na popularização dessa comercialização?

Acredito que sim. Esse trabalho foi iniciado em 2004 e a primeira grande publicação veio em 2007, na Revista Brasileira de Fruticultura, já com bastante repercussão. Vários outros trabalhos que vieram depois utilizaram essa descoberta. O conhecimento é a base para a construção de novas possibilidades. Como o fruto tem um alto potencial nutritivo, terapêutico, os cientistas é que oferecem essa possibilidade para o mercado – e o mercado e a indústria podem explorar aquele alimento. Para citar um exemplo: a castanha-do-pará era um produto como a carnaúba, como o nosso babaçu, não tinha muito valor agregado. Uma pesquisadora foi e identificou que ela é a maior fonte mundial de selênio, um mineral que está associado à melhoria da cognição e da memória . Hoje, o produto com maior exportação da região da Amazônia é a castanha – que nem é mais do Pará, é a castanha do Brasil. O valor comercial da castanha-do-pará aumentou mais de 30 vezes por conta da identificação de um composto. No caso do pequi ou de outros alimentos funcionais, essas descobertas científicas são a base, o pilar para o desenvolvimento de produtos. A nossa cultura alimentar atual está muito associada ao marketing nutricional. Quando se divulga uma pesquisa científica dessas, comprovada, as pessoas buscam introduzir na alimentação aquele produto.

O pequi também tem chances de virar o pequi do Brasil, então?

Eu observo que nós, no Nordeste – especialmente no Piauí – temos uma riqueza alimentar muito grande. Nós temos produtos que têm alto valor nutricional e isso normalmente está ligado a nossas condições climáticas. Nosso clima é mais inóspito – nós temos uma insolação muito grande, recebemos sol o ano inteiro. Para que a gente não desenvolva câncer de pele, por exemplo, temos que usar protetor solar, etc. Nos frutos e vegetais é a mesma coisa. Para eles sobreviverem a esse sol em abundância, a própria natureza faz com que aqueles que fossem sobrevivendo criassem mecanismos de defesa contra essa radiação solar. Os principais mecanismos de defesa são as cascas. Nelas, o metabolismo vai sintetizando compostos para que aquele fruto não sofra oxidação, não se queime com o sol. Esses polifenóis servem, no fruto, para proteger desse excesso de insolação. A gente consome o fruto e, como também somos integrantes da natureza, trazemos essas propriedades para nós. 

Há pesquisas desse tipo acontecendo para descobrir as potências de outros frutos e biomas?

Sim! Já existem vários estudos que mostram, por exemplo, que a uva produzida em Petrolina tem o maior teor de polifenóis que as produzidas no resto do mundo. Eu acredito que o conhecimento traz o valor agregado a tudo. Nós, nordestinos, brasileiros, como fomos colonizados, a gente não busca muito o que é nosso. E o resto do mundo fica observando o que nós temos de potencialidade, leva e industrializa. Um exemplo é o mel de abelha do Piauí. O Piauí é um dos maiores produtores mundiais de mel de abelha. Se você pensar, o mel é um dos produtos com maior valor nutricional que existe. As abelhas saem coletando néctar de várias flores, junta pra ela se alimentar e nós roubamos e consumimos. O Japão compra praticamente todo o mel que produzimos aqui: leva em tonéis grandes e lá do outro lado do mundo industrializa e vende a preços absurdos. Porque eles sabem que é um alimento altamente nutritivo. Nós não temos essa percepção. Não conseguimos agregar valor aos nossos produtos, pela falta de conhecimento científico. Eu penso que nossos produtos têm um potencial muito grande pelas condições climáticas, pelas condições do solo, mas nossa cultura é de desvalorizar o que é nosso e valorizar o que é de fora. 

Falando em desvalorizar… Como você vê o corte de 92% de recursos para a ciência, aprovado pelo Congresso Nacional a pedido do Ministério da Economia?  Como isso afetará o que é produzido hoje no Brasil e que consequências podemos esperar no futuro? 

Eu acredito piamente que o conhecimento científico é a base para o crescimento de um país. E eu digo crescimento no sentido de melhor distribuição de renda, mesmo. As pessoas, para adquirirem dignidade, elas precisam conhecer seus direitos, ter o mínimo de conhecimento. Qualquer país civilizado do mundo investe fortemente em educação – e quando falo em educação, isso inclui obrigatoriamente a pesquisa e a ciência. Porque cada país, cada região, tem suas particularidades. Estudamos aqui o pequi porque o pequi é nosso. Quis estudar o que é nosso para valorizar aquilo. Nós, que fazemos pesquisas nos institutos, nas universidades, recebemos essa notícia com uma tristeza muito grande. Nesse último governo temos sofrido muito vendo a nossa ciência ser estagnada. Só se faz pesquisa com financiamento – e pesquisa de laboratório é muito cara. Hoje, sem financiamento, vamos voltar a praticamente só absorver conhecimento produzido em outros países – e cada país só produz o que é útil para aquela comunidade. É uma visão muito pequena, estreita, de não investir. O nosso principal órgão de financiamento de pesquisa é o CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e ele teve praticamente 80% da verba cortada. Essa desvalorização da pesquisa por meio do não fomento está trazendo prejuízos muito grandes e para as futuras gerações será pior. O tripé da educação pública é ensino-pesquisa-extensão. Eu sou um exemplo cristalino de que a mudança vem graças à ciência. A gente só faz uma educação de qualidade, com aprendizado sólido, quando ela o executa. E às vezes tudo é uma visão política.

Aula prática com alunos do IFPI zona Sul (Arquivo pessoal).

Como assim?

Para você ter uma ideia: eu trabalho com um outro fruto, o babaçu. Fiz o pós-doutorado sobre ele. E eu estava lendo que na década de 1970, o produto que gerava maior economia para o estado do Maranhão era o babaçu. Lá tinha indústrias de processamento do óleo, fabricação de sabão e cosméticos. E por que essas indústrias de fabricação no Piauí e Maranhão praticamente faliram? Porque as multinacionais trouxeram a soja para todo o Brasil. E qual era o principal produto do babaçu? Era o óleo. Sob o ponto de vista científico, o óleo de babaçu – azeite de côco – pode ser consumido, claro que não em excesso, mas é um óleo típico nosso. As multinacionais pregaram a informação de que ele era aterogênico, que entope as artérias, tinham várias desvantagens nutricionais e paralelo a isso trouxeram a soja para o Nordeste. Hoje, praticamente todos nós consumimos óleo de soja.

Uma política de estado poderia ter barrado essa invasão…

E o pior não é isso: 95% da soja produzida aqui é uma soja transgênica. A população que consome nem sabe disso – porque nós temos o direito de escolher aquilo que a gente consome. Isso faliu a indústria do babaçu. Quando entrou a soja, o babaçu deixou de ser explorado e hoje quase não tem valor comercial. No futuro, quem sabe, se houver um investimento maciço, poderia voltar a ter. O Piauí e Maranhão são os estados que mais tem babaçu no Brasil. É uma forma de valorizar o que é nosso – você dá emprego para comunidades e famílias que trabalham com esses produtos.

sábado, 11 de maio de 2024
Categorias: Entrevista

Luana Sena

Jornalista, mestra e doutoranda em comunicação na Universidade Federal da Bahia.

1 comentário

Nivaldo de Oliveira Rocha · 20 de outubro de 2021 às 21:38

Parabéns professor e pesquisador pela brilhante pesquisa.

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